Crises e corrimões
Neste post falo sobre pensamento, crises e ruptura em Hannah Arendt, a propósito de uma sua imagem corrente sua, que é "pensar sem corrimão"
Por Renata Nagamine
Em 1965 Hannah Arendt é convidada pela revista Christianity and Crisis a participar de um colóquio que aconteceria no ano seguinte e teria por objeto a sucessão de crises no mundo contemporâneo. Conforme a carta que lhe endereça John C. Bennett, presidente do conselho da revista, seriam realizados dois painéis - um pela manhã, outro pela tarde - com intelectuais, artistas e políticos que tinham lidado com crises no curso de sua própria vida: ou seja, pessoas experimentados na matéria. Arendt falaria no painel da tarde. O convite adianta que não é preciso preparar material específico e que espera-se apenas que ela discuta o assunto com outros painelistas. Arendt o aceita e prepara, para a ocasião, uma fala curta, que ocupa quatro páginas de Pensar sem corrimão, coletânea dos escritos de Arendt entre 1953 e 1975 publicada no Brasil pela Bazar do Tempo. Intitulada “O caráter de crise da sociedade moderna”, a fala de Arendt no colóquio apresenta elementos que nos ajudam a ter uma ideia mais clara do que quer dizer “pensar sem corrimão”, para Arendt.
Heloisa Starling recupera um pouco da história da metáfora arendtiana em sua resenha do livro para a revista Quatro Cinco Um. Lembra que Arendt a emprega em resposta a uma pergunta da escritora norte-americana Mary McCarthy, uma de suas melhores amigas, em colóquio realizado em Toronto, 1972, para a discussão de sua obra (as trocas estão reunidas no livro com o título “Hannah Arendt sobre Hannah Arendt”). A certa altura , Arendt esclarece que costumava dizer a si mesma que pensar, hoje, é “pensar sem corrimão”. Por um lado, ela afirma: “sempre achei que precisamos começar a pensar como se ninguém houvesse pensado antes, e depois começar a aprender com os outros”. Por outro, compartilha que aquela era uma imagem que ela se dava quando refletia sobre o pensar. Ou seja, era uma imagem de uso pessoal e alternativa a outras, mais recorrentes, como “perder o chão” ou “abrir um abismo sob os pés”. Nos seus diálogos interiores, solitários e ao mesmo tempo plurais, não era, pois, o chão que Arendt sentia ter-lhe sido retirado, mas aquilo em que se escora ou em que se sabe que se pode escorar ao subir ou descer uma escada, logo, com o risco da vertigem, do tropeço, da queda, de tudo o que nos faz rolar sem controle. Em suas próprias palavras, “[à] medida que você sobe e desce os degraus você sempre pode segurar-se ao corrimão para não cair. Mas nós perdemos esse corrimão. É assim que digo para mim mesma. E é isso, de fato, o que tento fazer”. Não é pouca coisa se considerarmos que, para Arendt, pensar já é uma atividade que tende a destruir tudo aquilo de que se ocupa, sem pôr nada no lugar.
A metáfora arendtiana parece ter se tornado corrente nos nossos dias. E tem sentido que ela circule. Primeiro, o lançamento da coletânea homônima é recente tanto no original, em inglês, quanto em português. Segundo, e principalmente, pensar é, para Arendt, uma atividade relacionada com a busca de sentido, com a compreensão, e compreender a conjunção de crises que a pandemia ocasionou - sanitária, econômica, social e, em certos países, política - de fato está mais para subir escada do que para passear por caminhos batidos ou andar na planície, seja pelo esforço, seja pelo risco de um passo em falso.
É pelo risco de um passo em falso que somos ensinados a liberar uma das mãos para nos segurarmos no corrimão ao subir. Em “O caráter de crise da sociedade moderna”, Arendt aborda direta e claramente o que são os corrimões que lhe faltam. Em suas palavras, “[s]e a série de crise na qual vivemos desde o início do século pode nos ensinar alguma coisa, é, penso eu, o simples fato de que não há normas gerais que determinem nosso julgamento de forma confiável nem regras gerais sob as quais reunir casos específicos com algum grau de certeza”.
Os corrimões perdidos eram, assim, normas e regras que tinham validade geral, ou ainda, eram em geral e tão longamente aceitas que se tornaram costumeiras e, nessa condição, determinantes do julgamento e das atitudes das pessoas. Sabemos das Origens do totalitarismo que uma das normas que Arendt tem em mente é o mandamento Não matarás! e uma das regras que lhe ocorreriam é aquela segundo a qual quem nasce no território é do território. Era graças a normas e regras de validade geral que se sabia, minimamente, o que esperar. Com a série de crises do século XX, nomeadamente, a Primeira Guerra mundial, os campos de concentração e as bombas atômicas, no entanto, o consenso geral em torno dessas normas e regras se esgarçou, argumenta Arendt: o fio da tradição se rompeu, para usar uma imagem da própria autora, e seu rompimento significa que não podemos mais nos fiar naquilo que nos guiava pelo passado e tornava o futuro (por definição aberto) minimamente previsível.
O problema é menos que as normas e regras nas quais o pensar pôde se amparar até as crises do século XX desapareceram, e mais que elas perderam sua autoridade, construída por mais de dois milênios, desde que os romanos se apropriaram do pensamento de Platão e Aristóteles para dar sentido às suas próprias experiências. Quando fala em “pensar sem corrimão” Arendt está descrevendo o que pensar é nas condições em que ela pensa. Em outras palavras, o termo “pensar sem corrimão” pode ser entendido como uma imagem das condições do pensar para Arendt, das condições do pensar atuais ao seu próprio pensamento, o qual se desdobra em um mundo em que tudo é possível, ou nada é impossível, e em que o acesso ao passado não ilumina mais o presente.
Não poder mais contar com normas e regras gerais para se orientar no pensamento e no mundo por força da ruptura da tradição não implica, contudo, uma desistência da busca por repor padrões que possam cumprir o mesmo papel. Em “O caráter de crise da sociedade moderna” Arendt aponta que um dos efeitos da ruptura da tradição no pensamento foi a substituição dos padrões perdidos por acontecimentos históricos que condensavam aquilo contra o que se deveria lutar: o totalitarismo, o comunismo, o apaziguamento. “Devemos tentar refletir, julgar e agir levando em conta também o passado, mas sem confiar na validade das chamadas lições da história”. Para resumir, pode-se aprender no esforço por entender o passado, pode-se aprender com ele, mas não se deve transformar acontecimentos históricos em absolutos. “É difícil e desconfortável, mas também implica grandes desafios e talvez até mesmo promessas”, afirma ela, antes de emendar qual poderia ser uma dessas surpresas:
Eu não duvido que, da confusão de ser confrontado com a realidade sem a ajuda de precedentes, ou seja, a da tradição e da autoridade, surgirá finalmente algum código de conduta. Assim como estamos abertos a confiar em mudanças promissoras nas artes e nas ciências - realizações cuja conditio sine qua non foi o colapso da tradição -, não temos razão para ser pessimistas, contanto que a humanidade sobreviva de alguma forma.
Para que as promessas possam se cumprir, é preciso, então, reconhecer o novo e encarar subir a escada sem corrimões: ao risco de um passo em falso, ao risco da queda. Uma interpretação possível do que Arendt escreveu em 1966 é que, se por um lado, o reconhecimento do novo e a disposição de entendê-lo impõem pensar no limite, por outro, eles também criam condições propícias para começarmos a trilhar outros caminhos, caminhos novos, que todavia podem se tornar batidos a ponto de passarem a ser seguidos sem precisarmos parar para pensar em rotas alternativas e desbravá-las.
É assunto para outro texto, mas a recorrência de categorias e instituições do direito internacional penal, tais como “TPI”, “Haia” e “genocida”, em mídias sociais, projeções, manifestações em espaços físicos e jornais para tratar da condução da pandemia no Brasil podem indicar que há corrimão ao menos em alguns degraus da escada. Os crimes internacionais hoje inscritos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), entendidos como normas jurídicas globais para processar e punir a negação, na prática, de que a pluralidade é e deve seguir sendo a lei da terra, podem ser um corrimão forjado no cruzamento do lutar-contra com o lutar-por. Se essa afirmação tem sentido, as demandas por responsabilização que #BolsonaroGenocida comunica se encontram em um caminho que foi aberto nos anos 1940, com o Tribunal de Nuremberg, sinalizado pelo julgamento de Eichmann em Jerusalém, pisado e repisado nos anos 1980 e 90, em processos nacionais de transição. Por mais confusos que nossos tempos sejam, eles, por um lado, parecem corroborar o diagnóstico de Arendt e, por outro, convidar-nos a refletir, com e contra ela, sobre as condições em que pensamos, as quais compreendem, inclusive, crises de outra natureza.