Pensando a vacinação em tempos de populismo
Os desafios da vacinação contra Covid-19 no Brasil em tempos de populismo autoritário
Por Renata Nagamine1
Era um domingo de janeiro e acompanhávamos, olhos ansiosos entre a tela principal e o chat, uma sessão extraordinária da Agência Nacional da Vigilância Sanitária, Anvisa, em que se autorizaria o uso emergencial das vacinas da Coronavac e da Astrazeneca contra Covid-19, desenvolvidas em parceria com o Instituto Butantan e a Fiocruz. A sessão consistiu na leitura dos votos e diretores da Agência se sucederam explicando a importância das vacinas, o processo de análise, a gravidade do problema da pandemia de Covid-19, a importância da ciência e os efeitos deletérios do ‘negacionismo’. Refutaram a ideia de que há ‘tratamento precoce’ contra a doença. O diretor Alex Campos manifestou apreço pelos questionamentos dirigidos à Agência, os quais ele compatibilizou com a democracia e a ciência, mas também fez ver que suas ações foram pautadas por critérios técnicos e orientadas para prestação de serviço público. As atenções agora tendem a se voltar para a urgente campanha de vacinação, que tem sido uma política de superação de desigualdades e que ganha especial importância com a constitucionalização da saúde pública, em 1988. No Brasil de Bolsonaro, ela pode enfrentar obstáculos importantes e sem precedentes.
Uma pista desses obstáculos foi dada já durante a sessão e depois, quando o governador de SP, João Doria, iniciou a vacinação no estado. Enquanto tudo transcorria, o presidente, seus filhos, o pastor Marco Feliciano, o Ministério da Saúde, entre outros, tentavam nas mídias sociais dar novo fôlego à ideia de que há ‘tratamento precoce’ para a doença. A sincronia sugere que, com a aprovação das vacinas, o populismo bolsonarista lançará mão de outras operações relacionadas com a imunização, seja a sua contestação, seja a disputa dela.
Segundo Sophia Rosenfeld, em seu livro Democracy and truth: a short history, não surpreende que populistas falem sobre ciência. A proposta de Rosenfeld é pensar o populismo a partir das suas operações epistêmicas, isto é, do que agentes falam sobre conhecimento, reconhecendo em suas falas operações de plausibilidade, ou busca por validação. O argumento central de Rosenfeld é que práticas populistas se orientam por um antipluralismo no campo das ideias e ganham forma pela circulação de teorias conspiratórias, centradas em algum episódio de alegado roubo ou fraude, tendo a simplicidade como um horizonte utópico. Esse argumento não implica negar que o populismo possa ser antipluralista na política, na vida social, nos valores, e sim perceber que ele tem uma epistemologia, isto é, narrativas próprias sobre o conhecimento, não se define por uma ideologia e pode estar à esquerda ou à direita: daí a importância de se observar sua conjugação com formas autoritárias ou democráticas de governo.
No universo em que populistas se movem, as coisas são, assim, mais simples do que parecem e estão ao alcance de todos; especialistas é que as complicam. Para validar suas afirmações, elegem inimigos e apelam ao senso comum, entendido como instância portadora de sensibilidades e entendimentos forjados pela experiência, que opera pela intuição e que o líder populista aciona, por exemplo, mediante analogias.
Não se trata mais de terraplanismo, uma construção que creio parecer fantasiosa à maioria, mas de narrativas sobre conhecimento potencialmente plausíveis ao senso comum que são laboradas sobre o caráter contra-intuitivo da pandemia (o vírus, o contágio exponencial) e o próprio tempo dilatado da ciência. Para não ficar só no plano da abstração, ilustro. Desde o início da pandemia, o bolsonarismo tem contestado a necessidade de uso das máscaras pela população. Nos primeiros meses de 2020, a própria Organização Mundial da Saúde, ou OMS, indicou a prioridade de profissionais de saúde no acesso a máscaras N95, o uso de máscaras cirúrgicas a quem estivesse doente e depois acabou recomendando aos Estados que estimulassem seu uso onde houvesse transmissão comunitária. A organização não desacreditou o uso do equipamento, nem disse que não ele tinha eficácia, mas o posicionamento poderia ser instrumentalizado para conferir plausibilidade à narrativa contestatória do bolsonarismo. O mesmo se aplica ao uso da hidroxicloroquina, que a OMS descartou depois de pesquisas não conseguirem comprovar a eficácia da medicação. Pensando com Rosenfeld, o populismo atua nesses jogos entre peças que o tempo e a linguagem, o senso incomum da ciência, dificultam encaixar prontamente. Investe na produção de um conhecimento absoluto, cerrado à dúvida, a partir do desconhecido, do incerto, com os quais a ciência tem uma relação positiva.
Nas folgas entre as peças há espaço para a circulação da mentira e da desinformação por uma lógica da propaganda, como vimos numa coletiva do ministro da Ciência e Tecnologia sobre pesquisa com nizatoxanida, do vermífugo Annita, em outubro de 2020, com o empenho de vários órgãos do governo, do próprio presidente e a atuação de parte da própria comunidade médica no Brasil. Disputas intestinas a ela se tornaram públicas através de divergências entre sociedades de especialidades - como a de Infectologia e de Pneumologia - e o Conselho Federal de Medicina, ou CFM, quanto ao uso da hidroxicloroquina e outras medidas prescritas a título de ‘tratamento precoce’ com respaldo do Ministério da Saúde. Essas disputas transbordaram as sociedades de especialidades e suscitaram cobranças de ex-presidentes e conselheiros do CFM para que o órgão se posicionasse contra tratamentos sem eficácia comprovada para a Covid-19, após veículos de imprensa brasileiros circularem a notícia de que o TratCOV, um aplicativo do governo federal, estimulava a sua prescrição. Mas a cobrança resultou na publicação de um artigo de opinião do presidente do CFM na Folha de S. Paulo em que ele esclarece que a posição será mantida em nome da ‘autonomia do médico’ diante da não comprovação da ineficácia do ‘tratamento’.
O presidente do CFM não enfrenta, em seu artigo, três argumentos contrários ao seu. O primeiro é que alguns medicamentos prescritos, como a cloroquina e a ivermectina, têm efeitos colaterais, o que põe em conflito dois preceitos que devem informar a prática médica: atuar para o bem do doente e não lhe causar dano. É certo que pela letra do juramento de Hipócrates o médico reza que aplicará “os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento”, e, justamente, é em parte o poder e entendimento do médico que estão em discussão. Essa discussão tem sido articulada pela ideia de ‘autonomia do médico’ e faz ver a medicina como um campo atravessado por racionalidades que podem ser complementares ou concorrentes: a da ciência, que é baseada em evidências e tem aplicabilidade geral por ser validada por procedimentos reproduzíveis, e a da experiência prática, que é particular e não generalizável. Esta segunda racionalidade sustenta a fantasia, insinuada no artigo do presidente do CFM, de que todo médico é cientista, pois que faz as suas próprias experimentações. O terceiro aspecto denota, enfim, a recusa da precedência do público em relação ao particular em matéria de saúde, em meio a uma pandemia. Essa recusa remete à própria ideia bolsonarista de liberdade, que aparece como um atributo natural de indivíduos dissociados.
Não raro também acontece de as próprias soluções embaladas nas narrativas populistas terem história no país. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil, recém-publicado livro de Lilia M. Schwarcz e Heloisa Starling, mostra que em 1918 o vírus viajou de navio ao Brasil e depois entre províncias. A natureza do causador da gripe era desconhecida mesmo por cientistas, e as reações de políticos e da sociedade foram semelhantes às atuais: recusa da interrupção da vida cotidiana, negação da gravidade da doença e da necessidade de medidas quarentenárias, crença em soluções ao alcance das mãos, inclusive a antimaláricos (o quinino outrora, a cloroquina agora).
Em 1918, porém, a recusa à interrupção da regularidade da vida cotidiana por causa da gripe espanhola não foi articulada em redes globais, densas e frenéticas, que operam desinformação. Já no Brasil atual, a negação, vocalizada desde cima, ganha materialidade em circulação por circuitos que conectam WhatsApp, canais no Youtube, Twitter, canais de televisão, pregações em igrejas, e, se não há um movimento antivacina no país, o presidente se empenha em articulá-lo. Não fala abertamente contra os imunizantes. Por um lado, questiona sua segurança, com potencial de prejudicar a adesão da população a uma campanha de vacinação e de tornar profética sua palavra, bem como mobiliza o racismo contra asiáticos para sustentar uma teoria conspiratória (a China teria causado a pandemia deliberadamente) e antagonizar com o governador de São Paulo, transformando a vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica Sinovac em um campo de batalha. Por outro lado, seu governo não atua para realizar a necessária e urgente vacinação em massa, a despeito de nossas competências na área. Por falta de visão ou falha de planejamento, não foram adquiridos oportuna e suficientemente insumos indispensáveis à vacinação, tais como seringas e agulhas, além dos imunizantes.
Negacionismo e inconsistências na condução da pandemia têm efeitos sobre as desigualdades, a começar pela gestão da vida e por quem ela faz morrer. A Covid-19 mata desproporcionalmente os mais pobres, os quais, segundo pesquisa Datafolha feita em janeiro, são os que mostram maior rejeição às vacinas, ao lado dos mais jovens (25 a 34 anos). Nesse contexto, afirmar o direito de todos à vacina é uma forma de assegurar o acesso dos mais afetados a ela, e sua obrigatoriedade é um meio de constranger quem possa ter menor interesse em se imunizar a contribuir para a proteção aos demais. A decisão do Supremo Tribunal Federal em ações que lhe pediram uma interpretação do termo “vacinação compulsória” vai nesse sentido.
O Partido Democrático Trabalhista, PDT, pediu ao Tribunal que esclarecesse que vacinação compulsória no direito brasileiro é obrigatoriedade do Estado de vacinar e dos indivíduos de se vacinarem; o Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, pediu o afastamento da compulsoriedade em prol do direito à vida, à liberdade e à incolumidade, considerando uma alegada insegurança dos imunizantes. O presidente do Tribunal, ministro Luiz Fux, conduziu os trabalhos considerando a urgência de decidir a matéria e explicitou que lhes cabia fornecer segurança jurídica à sociedade dadas as disputas e a parte do STF em uma política pública. Caracterizando o contexto da decisão, os ministros falaram em “obscurantismo” e esclareceram que o termo “vacinação compulsória” significa “vacinação obrigatória”, que eles distinguiram de “vacinação forçada”. O Estado não é obrigado a determinar a obrigatoriedade da vacina, mas tem a liberdade de fazê-lo. Se o fizer, significará que há obrigações aos indivíduos - de se vacinar, estando sujeito, caso escolha não se vacinar, a sanções como restrições à circulação por certos espaços -, e obrigações ao próprio Estado, que deve dar acesso universal à vacina.
Com sua decisão, o colegiado não nega que os imunizantes são um recurso escasso, nem se opõe à eleição de grupos para acesso prioritário. Em linha com a jurisprudência do próprio Tribunal e com a OMS, reconhece que as vacinas são um ‘bem público’ (categoria que se refere a recursos cujo uso é não-rival e não-excludente) e aborda o problema pela racionalidade dos direitos, afastando a renda como forma de acesso válida por se tratar de recurso escasso, vital e de interesse coletivo. Essa racionalidade também dificulta validar publicamente a aquisição por empresas privadas de imunizantes, quer eles constem ou não do portfólio do governo federal: primeiro porque isso representaria a vacinação de grupos não prioritários e depois porque uma das faces da racionalidade dos direitos é a obrigação do Estado de prover as vacinas, o que implica agir inclusive em espaços que o setor privado venha a encontrar.
O caráter público da vacinação assume, aqui, alguns sentidos. Remete, primeiro, ao tratamento constitucional da saúde no Brasil, que é regulado pelo artigo 196 da Constituição, segundo o qual “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Dito de outro modo, esse tratamento é a forma em letra morta daquilo que o STF reafirma em viva voz. Em segundo lugar, e olhando especificamente para a pandemia, a vacinação de uns aproveita a todos, pela diminuição da ocupação de leitos, a redução do tempo de internação, pelo desenvolvimento de imunidade coletiva, como Monica de Bolle argumentou em artigo recente. O público, no caso da vacinação contra a Covid-19, relaciona-se, portanto, com o fato de a pandemia consistir em um problema sanitário que afeta a todos, ao mesmo tempo, igual e diferentemente. Outro aspecto do caráter público do problema é, enfim, que a imunidade coletiva depende da adesão das pessoas. Contra a liberdade dissociativa que o bolsonarismo defende, a interdependência aparece como um fato da vida no imbricamento entre o biológico e social: um fato que se pode recusar, como temos feito, mas cuja recusa cobra seu preço.
Nesse contexto, a campanha pela vacinação desponta como uma peça fundamental. Deve ser pensada como um aspecto do direito à vida em uma sociedade desigual. Como a sessão da Anvisa deixou claro, deve enfrentar desinformação acerca da segurança das vacinas e do ‘tratamento precoce’ com hidroxicloroquina, que meses atrás a OMS afirmou não ter eficácia e o bolsonarismo insiste em prescrever, com o risco de confundir e diminuir a adesão das pessoas. Também deve ser pensada como uma forma de correção da assimetria informacional em uma sociedade com pouca educação formal e marcada pela oralidade. Para tanto não poderemos contar com a inércia, nem com o que se poderia supor serem os interesses primordiais das pessoas. Mas poderemos contar com sensibilidade e entendimento comuns que ganharam forma ao longo de décadas de práticas bem sucedidas na esteira do Plano Nacional de Imunização, PNI, criado em 1973, em plena ditadura militar, como parte de esforços pela erradicação da pobreza e promoção do desenvolvimento. É irônico que autoritários hoje no poder, nas ruas e nos condomínios, cultuem os militares da ditadura, e não conheçam essa história.
Em plena democracia e em meio a uma pandemia que já matou cerca de 230 mil pessoas no Brasil, a campanha deve expressar mais que uma igualdade de destino, em que o pobre importa por portar doenças que põem os ricos em perigo. Trata-se de um direito de todos e da oportunidade de corrigir o mais importante erro de conta do país, em que uns contam mais do que outros. Narrativas populistas sobre o conhecimento, como são as negacionistas, só contribuem para aumentá-lo e nos ajudam a entender por que o bolsonarismo açula ao ataque a instituições técnicas, como as judiciais e a Anvisa, concorrentes suas em discursos de verdade.
Este artigo continua uma conversa com Fabrício Pontin e Ludmila Franca-Lipke transmitida pelo Via Marginal sobre dilemas éticos e jurídicos que as vacinas contra Covid-19 nos apresentam. Uma primeira versão dele foi publicada na Revista Quatro Cinco Um. No artigo me aproveito, igualmente, da conversa com Ludmila e Tatiana Vargas Maia sobre Democracy and Truth: A Short History, de Sophia Rosenfeld, também pelo Via Marginal.