Opinião e opiniões
Neste post reflito sobre os sentidos de opinião na democracia a partir de polêmicas recentes, como a do jogador de vôlei Maurício Souza e do influenciador digital Monark
Por Renata Nagamine
Nas últimas semanas, eu e colegas de projeto temático nos debruçamos sobre a polêmica que se instaurou em torno de uma postagem do jogador de vôlei Maurício Souza. Em outubro de 2021, ele se manifestou sobre a representação gráfica de um beijo homossexual em uma história em quadrinhos.
Por conta desta postagem, Maurício foi acusado de homofobia, constrangido pelo Minas Tênis Clube, seu empregador, a se retratar e, ao fim e ao cabo, desligado do clube. Como era de se esperar, por um lado sobraram críticos e por outro não faltou quem o defendesse da ‘turma da lacração’, dos ‘canceladores’ e o considerasse vítima do ‘identitarismo’.
Nosso artigo não tinha sido sequer submetido à avaliação do periódico quando duas outras polêmicas se instauraram no espaço público brasileiro. Primeiro, a discussão se acirrou em torno da opinião do influenciador digital Monark e do deputado Kim Kataguiri de que neonazistas deveriam poder se expressar livremente. Depois a polêmica se configurou em torno de um aceno do jornalista Adrilles Jorge, que no encerramento de um programa da Jovem Pan dedicado ao caso Monark se despediu acenando com o braço estendido e a mão espalmada. Muitos, entre os quais o apresentador, entenderam que Adrilles repetia uma conhecida saudação nazista.
Por essas polêmicas recentes, tenho pensado muito sobre a opinião. O termo designa, a princípio, uma enunciação acerca de um assunto comum, quer essa enunciação se dê em público, quer se dê em privado. Podemos enunciar preconceito, dogma, ideologia, conhecimento, ideias. Cortes internacionais, como a Interamericana ou a Corte Internacional de Justiça, podem ser consultadas pelos Estados, e a peça que elaboram em resposta recebe o nome de "opinião consultiva". Mas o termo "opinião" me parece adquirir, também, um sentido próprio à democracia tal como a conhecemos, a democracia representativa, que incorpora o ideário republicano e se constitui como um regime ancorado na circulação de enunciações refletidas a partir da qual se forma um entendimento compartilhado. Seu caráter compartilhado me parece tanto um fato posto quanto um pressuposto ancorado no fato de que os processos pelos quais o entendimento se forma são públicos, abrem-no a reformulações e, por isso, podem ser considerados suficientemente consensuais quanto à legitimidade da enunciação.
Estou simplificando, claro, um processo intrincado. Não é por acaso que vários grandes pensadores se dedicaram a refletir sobre os participantes nessas trocas e as condições de enunciação. Tais condições incluem desde os circuitos comunicacionais, seu funcionamento, os meios de comunicação, a garantia das liberdades de pensar e tornar público o que se pensa até o teor das enunciações e potenciais restrições. Tanto no caso Maurício quanto nos que seguiram a ele, os agentes imaginam aqueles que tomam por antagonistas como sua imagem invertida em posição e valor. Seria assim não fossem os meios digitais de comunicação, com seu algo/ritmo, isto é, seu tempo estranho ao tempo humano, aquele em que nosso pensamento se desdobra? A enunciação de um preconceito contra minorias raciais ou sexuais ou outras é uma opinião no sentido que o termo assume em uma democracia? Se sim, e se entendemos que o “mercado de ideias” não se autorregula, como validar e calibrar as restrições à liberdade de pensamento e de expressão? Como podemos notar, uma série de perguntas pode ser feita, e eu as faço apenas para ilustrar o quão desafiador o assunto é.
Meu interesse neste post é, além de complexificar o problema, refletir sobre o quão exigente a democracia representativa pode ser no que se refere à opinião quando consideramos que esse regime se ancora em certa episteme, em certa articulação entre enunciação e verdade, a qual informaria um ethos democrático. Isso não é necessariamente evidente ou trivial. Eu pelo menos só me dei conta da dimensão epistêmica da democracia quando, analisando o caso Maurício, percebi que a reação às postagens feitas pelo jogador a título de retratação, nas quais ele se desculpava por eventualmente ter ofendido alguém mas reiterava seu juízo acerca do beijo homossexual, acirraram os ânimos, em vez de acalmá-los.
No esforço por entender o problema, analisando as reações em mídias sociais e outras, ficou claro que, para parte da audiência, uma retratação supunha que Maurício refletisse sobre o que tinha dito, percebesse o preconceito em sua postagem e mudasse de entendimento quanto ao desenho. Quando ele se mostrou indisposto a se manifestar diferentemente, a pressão sobre o Minas Tênis Clube e as empresas patrocinadoras pelo seu desligamento aumentou.
O caso faz pensar que é suficientemente compartilhado o entendimento de que, em uma democracia, o termo “opinião” designa uma enunciação refletida, uma enunciação sobre a qual se pensou a partir do que compartilham aqueles com que interagimos presencialmente ou por meios de comunicação. Essa prática de refletir sobre o que pomos no mundo e o que outros conhecidos ou desconhecidos nos apresentam pode ser um pressuposto do que se entende por opinião na democracia representativa, e ele mesmo supõe abertura e disposição para tornar o pensamento uma prática constante. No limite do argumento, a democracia, como a entendemos na atualidade, supõe refletirmos tanto sobre o que nos chega quanto sobre o que pomos em circulação.
Em um ensaio publicado há 68 anos, entre a publicação das Origens do totalitarismo e de A condição humana, Hannah Arendt refletiu sobre a opinião na política, isto é, em um espaço de trocas e ações entre pares com vistas à liberdade, e deu a entender que cabe tomá-la como uma enunciação que se torna verdadeira na medida em que refletimos sobre o que nos falam os outros e escutamos o que outros pensam sobre o que falamos. Dito de outro modo, parte importante daquilo sobre o que nos debruçamos quando pensamos e que qualifica nossas enunciações é a representação que nossa imaginação forja das práticas alheias; e, se assim é, não é descabido afirmar que dependemos dos outros para pensar e tendemos a pensar tanto melhor, isto é, a entender tanto mais sobre o mundo e sobre nós nele quanto mais debatemos com pessoas que compartilham percepções refletidas. Somos, em suma, interdependentes.
Nossa interdependência para pensar é uma parte do que torna problemáticas enunciações como a de Maurício e ainda mais ideologias como o nazismo. Em graus diferentes, elas podem pôr em risco uma das condições do pensamento que Arendt enumerou: a pluralidade. Em uma das minhas passagens preferidas de A condição humana, Arendt elabora sobre os gregos antigos para afirmar que a opinião tem relação tanto com o modo como o mundo se abre para cada um de nós quanto com a realidade. Esta, afinal, constitui-se quando algo é percebido desde múltiplas perspectivas como sendo o mesmo. Por se constituir desse modo, a realidade é construída e depende de uma multiplicidade de perspectivas, de uma multiplicidade de aberturas do mundo para se estabelecer. Essas aberturas são necessariamente singulares, o que significa que, antes mesmo de nos constituirmos como sujeitos, o mundo já nos singularizou. Parte do que nos cabe, então, é perceber que posição é essa desde a qual o mundo se nos mostra e em relação à qual nossas opiniões podem se tornar não verdades absolutas, mas relativamente verdadeiras. É por isso, enfim, que levamos as opiniões - nossas e alheias - a sério: nós assentimos que, em algum grau, elas são verdadeiras, encerram a verdade do outro, isto é, não uma verdade absoluta, mas uma verdade relativa à abertura do mundo para ele, a qual se põe à prova do exame do público.
Com frequência retorno a esses escritos de Arendt, e retornei a eles nos últimos dias, quando me causou espécie a defesa da liberdade de expressão para neonazistas e a crítica de seus defensores baseada na comparação do nazismo com o comunismo. O par de ideias que apresentei sucintamente nos parágrafos acima me lembrou que a democracia, entendida como um modo de vida, é exigente em matéria de opinião porque a realidade, no modo como Arendt a concebe, é uma construção frágil e as condições para construí-la não estão dadas, em especial com as possibilidades abertas pelos meios de comunicação digitais e os usos que fazemos deles. Tais condições precisam ser asseguradas levando em conta, entre outras coisas, o tempo que esses meios imprimem em nossas interações, um tempo mais propício a enunciações que refletem com sinal trocado o desejo de refutar imediatamente e o que se deseja de imediato refutar do que um tempo propício à prática de um pensamento cuidadoso.
Garantir as condições para um pensar cuidadoso de si e do mundo pode requerer instituições funcionando, e certamente requer zelar pelos termos que informam nossa coabitação e nosso cotidiano. Em outros tempos convivi mais intensamente com o que hoje chamamos de homofobia e lembro com alguma segurança de ela me suscitar um misto de dor pela injustiça e compreensão pelo que era, em parte, expressão acrítica de uma convenção. Esses dias tentei me lembrar se já tinha imaginado que um dia me sentiria compelida a opinar sobre neonazismo e a defesa de sua circulação em nome da liberdade ou da pluralidade. Fui mal sucedida.
Eu aprendo com você(s) a me explicar melhor e não só dar vazão ao que penso. Baita texto, e "A condição humana" é um dos meus livros favoritos.
Só quero levantar uma coisa. Existe um esforço por parte de certos idiotas em SE TORNAREM "vítimas" desse cancelamento. A "saudação" de Adrilles Jorge, para mim, ficou bem clara que queria atenção - esperando os contrários elegerem-no deputado. Um gesto simples e bizarro, que não lhe dará cadeia mas, de novo, atenção, e Adrilles conseguiu o destaque que sempre sonhou: como "mamãefalei" e outros porcos que vivem de "provocar para sentir" e postarem esses efeitos. E sinceramente, imaginando esse cenário, estamos discutindo as coisas corretas?