Lendo direitos humanos
Neste post relaciono e comento algumas das minhas leituras preferidas no momento em matéria de direitos humanos
Por Renata Nagamine
A Declaração Universal de Direitos Humanos, ou Declaração de 1948, completou 73 anos no último dia 10, e achei que valeria a pena circular alguns títulos de livros e artigos que tenho lido e relido para analisar e pensar direitos humanos no mundo contemporâneo. Quero registrar, para todos os fins e por gratidão, que é um material que tenho discutido com colegas de projeto temático no Cebrap. Espero que ela lhe seja de algum proveito e que, ocasionalmente, suscite boas trocas.
Minha relação com os direitos humanos mudou muito nos últimos dez anos. Na faculdade de Direito esses direitos me foram apresentados como um conjunto de normas (regras e princípios) de direito internacional também inscritas no direito brasileiro, sobretudo na Constituição Federal, e reunidos sob o nome de “direitos fundamentais”. Foram apresentados, em suma, em sua dimensão regulatória, como uma gramática. Eu acho que, de fato, é importante conhecê-la e, para entender esse aspecto dos direitos humanos, recomendo a leitura de Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional, de André de Carvalho Ramos, e de Direitos fundamentais, de Virgílio Afonso da Silva. É claro que a bibliografia sobre o assunto é enorme, mas dentro daquilo que conheço em português são esses os livros que recomendo a alunas/os/es, por serem tecnicamente rigorosos e textualmente acessíveis.
Além de uma gramática, os direitos humanos são uma ideia. Há uma literatura rica na teoria e que adoro ler. É um material como The idea of human rights, de Charles Beitz, e “Social justice in the age of identity politics”, de Nancy Fraser. Mas vou optar por recomendar, aqui, aquilo a que retorno com mais frequência por gosto e por ossos do ofício, que é o capítulo das Origens do totalitarismo intitulado “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem” e todo um debate que se constrói em torno dele, em particular em torno da ideia de “direito a ter direitos”, por teóricos distintos entre si, como Étienne Balibar, Jacques Rancière, Seyla Benhabib, Judith Butler e, refletindo sobre a leitura butleriana do pensamento arendtiano, André Duarte. Se, por um lado, esse debate pode parecer restrito por se articular a partir de formulações arendtianas, por outro ele se abre a discussões sobre a reconfiguração do público - seja por ações de destituídos e despossuídos, seja pelos modos como local e global se conectam - e a temáticas específicas, como a das questões migratórias, que Lyndsey Stonebridge pensa em capítulo de seu Placeless people.
Como acontece com as ideias em geral, os direitos humanos têm história. Suas histórias mais dignas de nota são a da sua gramática, isto é, a da positivação das suas normas em diferentes escalas (a nacional e a internacional, ou a nacional, a regional e a global), a dos seus usos e a da sua sensibilidade. O próprio capítulo das Origens que mencionei no parágrafo anterior pode ser lido como estando numa espécie de intersecção dessas histórias ou como sendo um elemento empírico para começarmos a entendê-las. Ele foi publicado, afinal, em 1951, ou seja, 3 anos após a Assembleia Geral da ONU adotar a Declaração Universal, e Arendt a ignora. Ela aborda outros documentos de direito internacional no texto, como o Pacto da Liga das Nações e seus tratados de minorias, e não menciona a Declaração de 1948. Seu silêncio é quase incompreensível se enfocamos a positivação dos direitos humanos, como faz, por exemplo, Norberto Bobbio em A era dos direitos, mas se torna mais fácil de compreender se enfocamos os usos desses direitos, isto é, sua importância prática.
É esse o enfoque de uma historiografia muito proeminente na última década. Ela não ignora os marcos da história canônica dos direitos humanos, entre os quais as declarações modernas e a Declaração de 1948, mas indica e tenta entender algumas descontinuidades, como a inflexão nos usos do termo nos anos 1970, em The last utopia, de Samuel Moyn, e o papel dos Estados Unidos nesse processo, em Reclaiming American virtue, de Barbara J. Keys. Esses historiadores analisam a genealogia de categorias dos direitos humanos, como Moyn em Christian human rights, mas me parecem primordialmente interessados em entender como os direitos humanos se tornaram uma linguagem global de justiça, o que implica analisar os usos da gramática, os códigos, os meios dessa linguagem, as imaginações que nela ganham forma. Como mostra a coletânea de Keys sobre os ideais do esporte global, o fenômeno atravessa a vida social no mundo contemporâneo, e o próprio Moyn aponta para a dimensão utópica dos direitos humanos, em The last utopia e sobretudo em Not enough, no qual faz vez as ordens nacional e internacional que se projetam na Declaração de 1948, com atenção à sua dimensão socioeconômica.
O recorte empírico desses trabalhos desloca países sul-americanos - Argentina, Brasil, Chile, Uruguai - para o centro do debate. Esse deslocamento se dá porque as ações contra a ditadura nesses países resultaram na formação de redes e em campanhas transnacionais para as quais os direitos humanos foram importantes, ao mesmo tempo que as ações dessas redes foram importantes para que os direitos humanos chegassem a se tornar o que são hoje, uma linguagem global e hegemônica de justiça. Tais campanhas têm sido objeto de interesse de uma literatura em Relações Internacionais, com destaque para os trabalhos de Kathryn Sikkink, entre os quais destaco o livro Activists beyond borders, escrito em coautoria com Margaret Keck. Claude Lefort, no entanto, percebeu a mudança ainda no calor dos acontecimentos, já em 1979, e Luciano Oliveira a analisou em tese sob sua orientação, resumida em artigo do início dos anos 1990.
Já na redemocratização, os direitos humanos foram perdendo sua tonalidade anti-ditatorial para ganhar tons de autonomia e contornos mais universais na prática, atrelados à cidadania. Nesse processo também se tornaram objeto de contestação. Em artigo de 1991 em que analisa dados de campo dos anos 1980, Teresa Caldeira mostra que, batida a ditadura, só os direitos econômicos e sociais pareciam consensuais na sociedade brasileira. Se isso nos soa familiar, não é por acaso: é pelos atores, que readquiriram protagonismo político, e pelo que eles falam, coisas como “direitos humanos são direitos de bandidos”. Mas colegas de projeto temático e eu temos tentado argumentar que há, hoje, algo mais do que mais do mesmo: há tanto contestação dos direitos humanos quanto disputas pelos seus sentidos, porque eles se tornaram uma linguagem na qual nós mesmos nos constituímos como sujeitos.
Para pensar com parcimônia os direitos humanos nessa linha, temos relido conjuntamente um material que aquela historiografia mais recente dos direitos humanos em algum grau punha de escanteio, como A invenção dos direitos humanos, de Lynn Hunt, e, na esteira dele, “The aesthetic of human rights”, de Sharon Sliwinski. Essas leituras nos têm ajudado a analisar a modelagem de uma sensibilidade que diz respeito aos direitos humanos, e eu me servi delas para entender como denúncias contra o presidente da República, primeiro, pela destruição ambiental e o extermínio indígena, depois, pela gestão da pandemia ao Tribunal Penal Internacional podem não ressoar na sociedade brasileira. O problema é intrincado e multicausal, mas uma dimensão dele me parece ser o modo como nossa sensibilidade ganhou ossatura histórica, e não gostaria de dar a impressão de que faço aqui uma afirmação essencialista: justamente, trata-se, a meu ver, de um processo que repõe a longa duração, por ligar a história dos “direitos do homem” (nacionais) à dos “direitos humanos” (internacionais), e que precisa ser compreendido até para ser transformado.
A possibilidade de mudança passa pela imaginação. Sliwinski chama a atenção para ela no artigo que citei no parágrafo anterior, quando elabora sobre o pensamento arendtiano. Daniel Levy e Natan Sznaider, como a própria Sliwinski, analisam, ademais, a relação dos direitos humanos com a (re)imaginação do passado, considerando inclusive os meios de comunicação. Mas o tema me parece especialmente frutífero na produção de escritoras/es de ficção sobre direitos humanos e suas condições de possibilidade. Dentre elas/es lembro sem esforço de Primo Levi, Franz Fanon, Seamus Heaney, J. M. Coetzee, Toni Morrison, entre outras/os que me fogem. Stonebridge analisa a relação entre direito e literatura em seu Writing and righting, e ela me interessa crescentemente tanto pelos desafios que se apresentam quanto pela necessidade de entender mudanças em cursos que se evidenciam na prática inclusive de atores judiciais, como aquelas que reconhecem o estatuto de sujeito de direitos a rios e florestas.
Como mostram manifestações de diferentes Judiciários nacionais e de instâncias internacionais, tais atores têm justificado seu entendimento apelando a uma mudança de paradigma, do antropocêntrico para o ecológico, no qual a natureza tem valor intrínseco, isto é, independente de sua utilidade para os seres humanos. São, em parte, produtores da mudança que parecem dar por certa na fundamentação de suas decisões. Em algum grau essa mudança pode ser atribuída, assim, à ação de atores judiciais que articulam sua imaginação sociológica na linguagem dos direitos humanos.
Desde a Modernidade, os “direitos do homem” e os “direitos humanos”, tais como os entendemos na atualidade, têm sido uma linguagem na qual despossuídos e destituídos se incluem no comum, seja o público, seja a humanidade. Mas em outro espaço procurei mostrar que podemos estar diante de algo novo, uma mudança na própria episteme dos direitos humanos, porque, com a mudança de paradigma, a relação entre natureza e seres humanos se reconfigura: a natureza, que segundo Arendt foi separada da humanidade pelos antigos e portanto retirada da história pelos modernos, se re-historiciza, adquirindo dimensão ética e relevância política. Com isso ela se torna lugar de disputas, muitas das quais tendem a ser arbitradas por instâncias judiciais. Mas, se tamanho deslocamento se dá em sede judicial, é porque os juízes imaginam que ele terá plausibilidade suficiente para não comprometer sua autoridade. Espero me deter mais nessa temática em 2022.
Muito bom Renata! ótimas dicas sobre o tema. 1948 D.H. - ONU, 1951 Origens -H.A. Não tinha pensado de fato, porque não citou ? (mesmo que de forma crítica).