Chakrabarty, Arendt e a questão ambiental
Influenciada por escritos recentes de Dipesh Chakrabarty, retomo neste post algumas ideias de Hannah Arendt que podem nos ajudar a pensar a questão ambiental
Por Renata Nagamine
Há muitas maneiras de ler Hannah Arendt, muito o que falar sobre seus escritos, acertos e erros, e há muitas faces suas. Minha Arendt, por exemplo, é antes a pensadora dos problemas relacionados com a ciência no espaço público, das dificuldades do entendimento, da importância do pensamento, das formas de operação da imaginação, da concepção perspectivada da realidade do que a famosa teórica do totalitarismo e da banalidade do mal. Por isso, o encontro fortuito, na esteira de uma conversa entre amigas, com os dois últimos livros do historiador indiano e professor na Universidade de Chicago Dipesh Chakrabarty tem sido instigante. O historiador explora caminhos ainda pouco batidos no pensamento arendtiano e o inclui com proveito no debate sobre questão candente.
Em The crises of civilization (2018) e The climate of history in a planetary age (2021), Chakrabarty lança-se ao desafio de contar uma história planetária e de entretecê-la a histórias já contadas da humanidade. Um de seus propósitos é pôr em discussão uma forma específica de agência humana, a geológica. Sua proposta responde a mudanças – intelectuais, técnicas, sensíveis – que tornaram essa agência crucial. Arendt começou (e só começou) a desfiar essa história em sua análise sobre a centralidade das categorias “processo” e “desenvolvimento” no pensamento e na política ocidentais.
Um escrito de Arendt primordial para essa discussão é “O conceito de história: antigo e moderno”, publicado no início dos anos 1960 na coletânea Entre o passado e o futuro, com um título que remete às famosas teses de Walter Benjamin. No ensaio, Arendt se propõe a pensar criticamente o conceito moderno de história, reconstruindo a constelação dos gregos antigos, na qual a história aparece em relação com a natureza. Nessa constelação, enquanto a natureza é percebida como imortal para seres mortais, a história é a forma de imortalizar o que há de mais perecível: atos e palavras, os grandes feitos dos nossos e daqueles que estão entre outros, singularizados por belos discursos, que se imprimem nos ouvintes e os inspiram a recontar o que ouviram.
A relação antiga entre natureza e história, segundo Arendt, transforma-se com a era Moderna, no bojo de mudanças que compreendem formas de alheamento (ou alienação) dos indivíduos em relação ao mundo em sua dimensão compartilhada. Em A condição humana, Arendt afirma que, no período que se inicia com a desconfiança dos sentidos como fonte do conhecimento e se encerra com a descoberta da energia nuclear e a invenção do satélite, os indivíduos tanto se voltam para dentro de si mesmos quanto desenvolvem meios para sair da Terra, ver o planeta de fora, desde um ponto de vista a partir do qual podem objetivá-lo e apreendê-lo em sua totalidade. O processo abrange a Revolução Industrial e o advento do automatismo, ou do que Arendt denomina de tecnologia, e tem importância decisiva por duas razões. A primeira é que os indivíduos transformam a natureza em um campo de ação, no qual intervêm deflagrando processos imprevisíveis, incontroláveis e irreversíveis. Tudo doravante passa a ser resultado de ações humanas. Em segundo lugar, a tecnologia tem um tempo próprio, que não é humano em nenhum sentido, nem das trocas, nem biológico. Não por acaso falamos em algo/ritmo.
O problema não é só sermos instrumentalizados pela técnica. Em A condição humana, de 1958, Arendt afirma que os seres humanos são seres condicionados, que se adaptam ao seu meio ambiente, mas também o transformam, e é próprio da relação que estabelecemos com os instrumentos que eles nos condicionem. A tecnologia, no entanto, poderia nos condicionar diferentemente, por sua capacidade de mimetizar o processo vital e de tornar mais e mais difícil interrompê-lo, até habitarmos outro tempo, um tempo outro, um algo/ritmo. Sua preocupação é que, no limite, a relação mimética da tecnologia com o natural e sua forma de operar mudem a raça humana. Sendo incorporada em outras atividades, a tecnologia poderia, em outras palavras, agir sobre nós, como nós agimos na natureza.
Nos anos 1950 o processo não está, porém, consumado. Como Arendt comenta em seu livro, o uso da tecnologia ainda está restrito ao trabalho, o que significa que o ciclo vital interrompe, com o descanso, a vida no tempo da técnica. Já em uma palestra de 1969 intitulada “O ponto arquimediano”, Arendt parece dar por consumada a mutação. Um efeito dessa transformação é a destruição do mundo no duplo sentido de artifício erigido por mãos humanas para abrigar a sucessão das gerações, o novo que pode irromper com elas, e das condições naturais em que a vida nos foi dada no planeta.
É engenhosa por tudo isso a proposta de Chakrabarty de contar uma história planetária, ou de repensar o humano e a inscrição da humanidade na narração de uma história de tempo longuíssimo, que tem início antes dela, e na qual, no presente, as percepções sensíveis não raro são desconfirmadas pela ciência, a possibilidade de dar sentido ao que acontece é prejudicada e a ação é urgente. Pensando com Chakrabarty, contar uma história planetária implica um deslocamento do centro da narração e do narrador, que se projeta num futuro distante a partir do qual imagina como intervir no presente. Requer um movimento proléptico, como diria Homi Bhabha. Depois, os deslocamentos podem ter por efeito a produção de diferentes humanidades: (i) a que se confunde com o gênero humano como unidade biológica, com dimensões políticas e importantes estratificações sociais, e (ii) a que se reconhece como força geológica, conjugando em uma nova unidade diferentes formas de vida no planeta, humanas, não humanas e mesmo microscópicas.
Essa unidade excêntrica põe a questão ambiental sob outra luz. Sem tirar o foco da parte que cabe aos países mais ricos e aos indivíduos mais ricos dentro deles, abre caminho para pensar uma responsabilidade adicional e irredutível porque as contribuições são diferentes ainda de outras maneiras. Chakrabarty ilustra seu argumento com a questão populacional na China e na Índia, com o largo uso do carvão que esses países importam de outros, como a Austrália, onde a retórica ambientalista tem forte ressonância. Um desafio passa a ser pensar, então, as relações entre a humanidade como unidade biológica e ficção política com suas estratificações sociais em relação com a humanidade entendida como uma força geológica.
Não há contrariedade. Por um lado, trata-se de pensar o humano tendo em conta as histórias inscritas em corpos, as marcas que neles se imprimem com sentidos depreciativos ou o valor que portam certas categorias. Esse valor se relaciona com as formas que a própria estratificação social e, por conseguinte, a dominação podem assumir em função do que se estabelece como positivo, seja essa positividade relacionada com a percepção de superioridade - de uma classe social, do masculino, do branco -, seja ela relacionada com a percepção de normalidade - da heterossexualidade. Tais marcas sociais guardam relações intrincadas entre si e importam tanto nas nossas relações uns com os outros quanto nas nossas relações conosco mesmos. Primeiro porque pensar é, entre outras coisas, pensar-se, representar-se para si mesmo em pensamento, e essa representação passa pela forma como nós nos percebemos em nossas interações com os outros. Na formulação do Bhabha leitor de Arendt, o sujeito, quando se pensa, dá imagens de si a si mesmo, porque ao se pensar já não é um, mas dois em um. Depois, aquelas marcas importam porque restringem, na prática, o alcance de normas de aplicabilidade universal e dão passagem a discriminações em espaços de igualdade.
Essa dinâmica, em matéria ambiental, é perversa, pois nela os mais diretamente afetados costumam ser os menos ouvidos, aqueles cuja opinião tem menos peso, mesmo quando estão em maior número: a reconfiguração do comum passa pela correção desse erro de conta, para falar com Jacques Rancière. Um desafio é imaginar como todos podem vir a ser - de direito e de fato - pares nas conversas e nas decisões sobre os assuntos comuns, o modo de vida em que, para Arendt, chegamos a ser plenamente humanos, pois podemos aparecer em nossa singularidade, deixando ver como o mundo se abre para nós, sem correr o risco da desigualdade. Trata-se, em suma, de pensar criticamente o humano da Ilustração, de fazer ver o que ele tem de artefato, sem negar sua importância para fins de direito, sem negar a importância dos direitos e sem reificar identidades coletivas na produção de explicações totais da experiência.
Por outro lado, trata-se de pensar o humano no registro do múltiplo, como corpos que abrigam processos de diferenciação e outras formas de vida, ou ainda, corpos que beneficiam outras formas de vida e se beneficiam delas. Costuma-se tomar esses benefícios de barato, como dados, porque o antropocentrismo é o paradigma que nos une a nós, modernos. Refletir sobre o humano em uma idade planetária implica, enfim, repensar a relação entre natural e social, o que Donna Haraway, Bruto Latour, Eduardo Viveiros de Castro, entre outros, têm feito há muito tempo. Dipesh Chakrabarty também percebeu que Hannah Arendt pode ser uma boa companhia nessa empreitada.