Sobre ciências e senso comum no Brasil da pandemia
Neste ensaio abordo em caráter incipiente aspectos das relações entre ciências, incluindo a comunicação das ciências, e o senso comum em um país marcado pelo populismo
Por Renata Nagamine
Com a declaração da Organização Mundial da Saúde de que a Covid-19 tinha se tornado uma pandemia, há um ano, formou-se gradualmente um amplo consenso entre pesquisadores nas ciências biomédicas em torno de uma série de medidas destinadas a evitar o contágio pelo novo coronavírus, o SARS-CoV-2. Esse conjunto de práticas, que chamamos comumente de medidas quarentenárias, consiste no uso de máscaras, no cuidado para não tocar nariz, boca e olhos, na higiene das mãos com água e sabão ou, na falta deles, álcool em gel 70% e no distanciamento social, o que implica evitar aglomeração de pessoas e contato físico, reduzir o tempo em local fechado e, por conseguinte, mudanças radicais nas condições de trabalho. Diferentes países chegaram a adotar o isolamento completo, com uso da coerção, se necessário. Todas essas medidas consistiam em um esforço por conter o ritmo de contágio pelo vírus, o que era fundamental para evitar a sobrecarga do sistema de saúde do país e, em consequência, diminuir o número de mortos. Elas eram justificadas na ausência de qualquer possibilidade de prevenção da doença e de vacinas.
Enquanto o mundo se ajustava à realidade da pandemia, atuando tanto na frente da saúde quanto na da economia, o presidente da República do Brasil, alguns de seus ministros, seus filhos e apoiadores, entre os quais deputados evangélicos e católicos, circulavam desinformação contestando a gravidade da doença, a necessidade do uso de máscaras, das medidas de distanciamento ou de isolamento social, a segurança das vacinas e prescrevendo tratamento precoce sem qualquer respaldo científico. Como as práticas persistem, é preciso tratá-las no presente. Com elas, tais atores buscam validar sua posição seja disputando o conhecimento verdadeiro desde as margens da ciência, para o que contam com grupos de médicos, seja relativizando a importância das medidas sanitárias em relação à economia. Para tanto, tecem narrativas sobre o conhecimento científico que não guardam lugar para a dúvida e que parecem plausíveis, como pode acontecer com mentiras orquestradas. Difundem o credo de que as coisas são mais simples do que parecem e de que há solução fácil, dando credibilidade à crença de que sacrifícios são desnecessários ou sujeitos a ponderação e que os defensores de sua necessidade são inimigos públicos. Com bolsonaristas, entre outros populistas autoritários, o nonsense assume, enfim, o abandono da não-contradição como princípio e encontra nesse abandono a sua força contestatória.
Em contraposição, cientistas e comunicadores de ciência tentam facilitar para o público o entendimento da pandemia, sem distorcer informações no afã de simplificá-las. Mas, se a defesa das ciências contra o populismo implica rechaçar seu antipluralismo, ela não é só por isso pluralista, não está imune à produção de ideias essencialistas e de hierarquias entre saberes no espaço público. O populismo autoritário mostra que o problema toca a democracia de diferentes formas.
Uma dessas formas, creio que mais discutida, é a crise de autoridade das instâncias produtoras de algo em torno do que há consenso forte, ou, simplesmente, de uma verdade. Essa crise abre caminho para que populistas autoritários experimentem narrativas sobre a política, o conhecimento, os fatos, e construam a plausibilidade de algumas delas. Pensando na pandemia de Covid-19, para arbitrar as disputas entre instâncias que reclamam a verdade ou a correção do que falam sobre aspectos da pandemia, seria preciso contar ou com a autoridade de cientistas e instâncias produtoras de ciência junto aos brasileiros, ou com um tipo de chão construído por conhecimento baseado em experiência, herdado e compartilhado, que nas Origens do totalitarismo Hannah Arendt, entre outros, chamou de senso comum. Nenhuma dessas duas condições parece presente entre nós. Como as eleições de 2018 mostraram, a sociedade brasileira tem sofrido de uma crise de confiança que afeta poderes republicanos (Legislativo e Judiciário), partidos políticos, imprensa e universidades. Já o grupo no poder fabrica e circula teorias conspiratórias, descolando do mundo o senso comum com promessas de facilidade e coerência. Com isso pode achatar intuições e percepções do real, a dificultar o pensamento e o julgamento.
Desinformações circulam no Brasil por circuitos que são intocados pela luz do público em sua fase de produção de conteúdos e acessados através de redes que se baseiam em algum grau de confiança. Quando informações dos veículos tradicionais da imprensa brasileira alcançam usuários expostos a tais redes, a desinformação já se apresentou de formas variadas. Se tem sido assim em relação a fatos da vida nacional, é ainda mais no caso da pandemia, que interrompe o cotidiano e é causada por um ser (ou não ser) invisível a olho nu. Já a forma que a velocidade do contágio assume, exponencial, é contra-intuitiva, o que torna a tragédia previsível por especialistas, mas, mesmo deflagrada, só tardiamente perceptível e não necessariamente fácil de se imaginar com base em experiências prévias.
Essa combinação de invisibilidade a olho nu e contra-intuitividade em um fenômeno complexo com desdobramentos dramáticos abriu espaço para uma série de debates e práticas em torno da ciência. E não deixa de ser interessante que na era da ‘pós-verdade’ abundem disputas acerca do que é verdade, quem a diz e onde ela se encontra. Nessas disputas tem havido espaço para a organização e circulação da desinformação por uma lógica da propaganda, como vimos numa coletiva do ministro da Ciência e Tecnologia sobre pesquisa com nizatoxanida, do vermífugo Annita, em outubro de 2020, com o empenho de vários órgãos do governo, do próprio presidente e a atuação de parte da própria comunidade médica no Brasil. Disputas internas a ela se tornaram públicas através de divergências entre sociedades de especialidades - como a de Infectologia e de Pneumologia - e o Conselho Federal de Medicina, ou CFM, quanto ao uso da hidroxicloroquina e outras medidas prescritas a título de ‘tratamento precoce’ com respaldo do Ministério da Saúde. Essas disputas transbordaram as sociedades de especialidades e suscitaram cobranças de ex-presidentes e conselheiros do CFM para que o órgão se posicionasse contra tratamentos sem eficácia comprovada para a Covid-19, após veículos de imprensa brasileiros circularem a notícia de que o TratCOV, um aplicativo do Governo Federal, estimulava a sua prescrição. Mas a cobrança resultou na publicação de um artigo de opinião do presidente do CFM na Folha de S. Paulo em que ele esclarece que a posição será mantida em nome da ‘autonomia do médico’ diante da não comprovação da ineficácia do ‘tratamento’.
A discussão, abordada mais detidamente em outro post, faz ver a medicina como um campo atravessado por racionalidades que podem ser complementares ou concorrentes: a da ciência, baseada em evidências e tem aplicabilidade geral por ser validada por procedimentos reproduzíveis, e a da experiência ou da prática, particular e não generalizável. Esta segunda racionalidade sustenta a fantasia, insinuada no artigo do presidente do CFM, de que todo médico é um cientista por si só, à medida que faz as suas próprias experimentações.
Em A condição humana, livro de 1958, Hannah Arendt aborda o problema ao analisar a produção, o consumo e a técnica no mundo moderno. Nesse seu livro, lança um olhar crítico para o paradoxo de as ciências, ao mesmo tempo, atravessarem a política e serem cada vez menos discursivas. Esse paradoxo significa que as ciências moldam a política e mal se consegue falar delas, pois um fosso se abriu entre o mundo em que cientistas se movem e o dos leigos, seja pela super especialização e pela complexidade dos procedimentos, como é o caso das ciências naturais e biomédicas, seja pela formalização, como é o caso da Economia.
A pandemia pode ser encarada como um convite a nos fazer pensar o lugar da ciência no mundo moderno num momento em que, pelos desafios inéditos que ela porta, precisamos dela tanto quanto da crítica da hybris da razão. Refletindo com Arendt e a leitura que Sophia Rosenfeld faz de seus escritos em estudo sobre populismo, do seu Common sense a Democracy and truth, estamos falando de conciliar ciência e pluralidade nos níveis social, político e epistemológico, o que significa articular conhecimento e pensamento, mantendo uma relação crítica com a produção de bordas e hierarquias no esforço por defender 'a ciência' em meio a disputas acirradas.
Para tanto podem-se tensionar algumas ideias ou convenções. Uma delas é o critério que informa o juízo sobre a ciência. Pensando com A condição humana, esse critério seria antes o sentido do que o valor, ou seja, teria por referência o mundo e a sua permanência. Isso não significa que a ciência não possa ter uma dimensão de utilidade; ao contrário, o conhecimento é útil de várias formas, como pudemos perceber em relação ao uso de máscaras, ao distanciamento social ou à vacinação, para ficarmos na pandemia de Covid-19. O conhecimento qualifica opiniões e orienta condutas. Mas, pode-se elaborar com base em Arendt, ele não se valida, nem deve se orientar primordialmente pelo mercado. Pode parecer um jogo inócuo de palavras, mas explicitar critérios de validação de práticas sociais possibilita pôr em questão a relação entre produção do conhecimento e moral utilitarista, que posiciona de partida saberes uns em relação aos outros e tende a diminuir o que não tem aplicabilidade imediata. Filosofia e literatura são inúteis nesse sentido específico, mas o método científico, por exemplo, é tributário da filosofia e mesmo a noção de método se aperfeiçoa graças ao intercurso das pessoas e ao acúmulo de conhecimento. Outra importância da filosofia para as ciências reside no fato de que, até por não estarem referidas à utilidade, ela pode se colocar perguntas que sabemos serem sem respostas e que ampliam, apesar disso, o horizonte no qual cientistas formulam perguntas respondíveis. Construções reducionistas da ciência escamoteiam, por naturalização, o que ela tem de construído, ao passo que é no fato de ser uma construção - da coleta de dados à análise - que as várias ciências se encontram.
Uma disposição antipluralista aparece hoje na forma como a ciência, da economia às biomédicas, às vezes é defendida em relação às opiniões e à não-ciência no espaço público. No que toca às relações entre conhecimento e opiniões, um primeiro aspecto a considerar é que, embora em sua defesa se reitere que a verdade científica é contingente e que a ciência se define por recolocar a dúvida, aquilo que se chuta pela porta ressurge pela janela na distinção entre verdadeira ciência, pseudociência e não-ciência. Esse esforço é necessário em tempos de desinformação orquestrada para desacreditar o que procedimentos consensuais para a produção de ciência validam, abrindo caminho para narrativas alternativas sobre conhecimento científico. Trata-se, em síntese, de uma comunicação em reação ao que temos chamado de negacionismo e para lhe dar eficácia pode-se inclusive recorrer a analogias do senso comum, um recurso válido para facilitar o entendimento daquilo que pertence a um mundo de sentidos não largamente compartilhados. Essa comunicação científica é antagônica ao antipluralismo populista, que se aproveita do negacionismo; mas é preciso atentar para o fato de que no processo comunicacional ela também fabrica uma ideia, uma imagem de ciência, e essa ideia ou imagem pode ser essencialista ou, por exemplo, colada nas ciências naturais. Dito de outro modo, o antagonismo de cientistas e comunicadores ao antipluralismo populista não os torna pluralistas em relação a outras ciências.
Já um segundo aspecto de interesse são as relações entre conhecimento, opiniões e senso comum, sobre as quais Arendt refletiu esparsamente. Como ela argumentou em Compreensão e política, um ensaio de 1954, para que a ciência tenha sentido, cientistas devem partir do senso comum e retornar a ele: do contrário, pode-se acrescentar, correm o risco de operar numa espécie de senso incomum, não compartilhado fora do círculos de especialistas. Se cientistas e comunicadores científicos têm se empenhado em facilitar o acesso do público ao intrincado processo da pandemia, economistas, por exemplo, não raro abordam a economia, inclusive na pandemia, como se ela não dissesse respeito ao comum, ou seja, como se não houvesse a seu respeito uma espécie de entendimento comunal do qual partir e ao qual retornar. Eu me pergunto se reconhecer a realidade do senso comum, compreendê-lo em suas operações e dispor-se ao tráfico com ele pode facilitar o uso do conhecimento econômico para transformar o senso comum pela construção de outro entendimento.
Mas a sua contramão é mais comum: a reclamação da precedência de economistas em relação ao público no que se refere a questões econômicas, com base no entendimento de que encarnaram o tratamento racional na matéria. Esta afeta, no entanto, diretamente a vida cotidiana e tem estado no centro do debate público brasileiro, o que significa que, do ponto de vista da democracia, pode ser importante calibrar o espaço dos especialistas para não esvaziar o poder daqueles que serão mais diretamente afetados por decisões. Por fim, a grande precedência dos técnicos em relação ao público deixa ver que se tende a conferir plausibilidade a uma única racionalidade (com sua forma de comunicação, seus métodos, seus padrões próprios, os valores embutidos neles), e a pluralidade de perspectivas fica restrita ao próprio campo: no Brasil, ordenado em ortodoxos e heterodoxos em função da relação de grupos com um conjunto de pressupostos.
Nas Origens, em Compreensão e política e A condição humana, Arendt fornece elementos para pensar como compromissos com um conjunto restrito de postulados e uma relação acrítica com a ideia de racionalidade, que ignora o que ela tem de construído, de histórico, de seletivo e seus limites, pode operar uma cisão entre consistência interna e sentido, tornando o mundo irrelevante para cientistas. Um dos limites da racionalidade de economistas, sobretudo do mainstream econômico, pode se encontrar na própria incompatibilidade entre a ideia de Estado que se forja no campo (um Estado eficiente), aquela inscrita na Constituição (um Estado de Bem Estar) e a aparentemente prevalecente na sociedade brasileira, que demanda serviços públicos e igualdade. Tem-se a impressão de que a ideia de democracia entre economistas do mainstream parece moldada, no limite, pela forma como diferentes grupos políticos se relacionam com esse conjunto de postulados, e “irracional” qualifica falas que os põe em questão. Não seria essa operação epistêmica uma forma de blindagem contra choques desestabilizadores do real? Se sim, ela difere das operações populistas para a produção de um mundo internamente coerente por trabalhar de modo controlado com dados de realidade; mas se assemelha a tais operações na impotência do real em transformar seus pressupostos, como temos acompanhado nos últimos anos o debate em torno da questão fiscal no Brasil. Daí a pertinência de falar em defensores absolutistas da ciência, uma ideia que Monica de Bolle lançou em ensaio recente e que abre um caminho instigante à crítica se lembrarmos que a racionalidade do Iluminismo se contrapõe a formas absolutistas do poder, afirmando, como Immanuel Kant em “O que é Esclarecimento?”, que pensar é examinar crenças, preconceitos e os próprios pressupostos. É o pensamento como antídoto à hybris da razão, a um potencial absolutismo científico.
Observando o presidente do Brasil e outros explorarem o fosso que se abriu entre o mundo dos cientistas e aquele que não-especialistas habitam, entendo que vale a pena considerar essa relação: para Arendt, entre outros pensadores, o senso comum importa como uma espécie de controle não coercitivo inclusive de pretensões de detentores do conhecimento em relação a não-especialistas no debate público. Arendt não quer com isso igualar opinião especializada e opinião leiga em toda e qualquer situação, nem desacreditar o conhecimento ou abrir caminho para opiniões arbitrárias. Mas quer demarcar o espaço da política como impróprio para absolutos e, sobretudo, está indicando um perigo: o de que a defesa da ciência, a depender do que reivindica e produz, também resulte na fragilização da democracia. O encontro entre populistas e racionalistas absolutistas representa uma desvantagem para a ciência, que porta complexidade e contingência. Por isso a prática recorrente de conciliar ciência e pluralidade, desde a distribuição dos produtos do conhecimento até a abertura às interpelações do senso comum, pode ser importante para responder de forma produtiva a seu maior inimigo.