O Cerrado e a política
Neste post compartilho um material sobre a destruição do Cerrado que me despertou para o problema e que tem me feito pensar sobre a natureza em relação com a política, o direito e imaginações
Caro/a leitor/a,
Uma matéria de Marta Salomon na revista Piauí de janeiro de 2022 informa que, em duas décadas, metade do Cerrado desapareceu: em números, são mais de 995 mil quilômetros quadrados. Não é um assunto que eu pesquise ou conheça a fundo, mas pensei em compartilhar neste espaço um material não acadêmico que me despertou para o problema nos últimos tempos.
É conhecimento do ensino básico que o bioma Cerrado, apenas no Brasil, estende-se pelos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Tocantins, Maranhão, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Paraná, é cortado pelas três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (a Amazônica, a do Prata, a do São Francisco) e é considerado uma floresta de cabeça para baixo, por conta das raízes profundas da sua vegetação. O mapa abaixo, do IBGE, apresenta esse bioma em relação aos demais e ao território nacional. Nele, o Cerrado está colorido em rosa.
Quando olhamos o mapa, a descrição do Cerrado como uma floresta de cabeça para baixo o torna uma espécie de espelho invertido da Amazônia, que padece de mal semelhante, mas costuma merecer um pouco mais da nossa atenção e rigor no que se refere à regulação. Como Salomon informa na matéria citada há pouco,
Diferentemente da Amazônia, onde a legislação ambiental só admite o desmatamento de até 20% da extensão das propriedades rurais, no Cerrado esse limite varia de 65% a 80%. Mesmo com regras mais flexíveis, o desmatamento no bioma preocupa sobretudo pelo risco que impõe à oferta de água em todo o país.
A imagem da floresta de cabeça para baixo também me parece potente por direcionar a imaginação para a vida subterrânea, um mundo que se faz longe da luz, pelas relações entre múltiplas espécies vegetais umas com as outras e com microrganismos. Uma produção da BBC aborda de forma clara e estimulante como é essa vegetação, como ela se relaciona com o regime de chuvas e como sua preservação importa para alimentar lençóis freáticos e aquíferos. Já o repórter João Fellet abordou o problema a propósito da transformação das cataratas do Iguaçu em finos fios d’água, em 2021.
Essas duas peças comunicacionais fornecem elementos para entender como o avanço da fronteira agrícola, em especial o cultivo de soja, milho e arroz em escala industrial, pode impactar o Cerrado. Não quero transformar aqui um assunto intrincado, no qual se entrecruzam várias ciências aplicadas e não aplicadas, numa planície. Mas não me parece arriscado afirmar que as relações tensas entre natureza e produção industrial que se evidenciam no problema da destruição do Cerrado são um tema crucial para o país, que me parece ter se industrializo primordialmente pelo campo, com a centralidade do agronegócio, em particular da exportação de soja, na nossa balança comercial (ao lado da mineração e da extração de combustíveis fósseis, o que do ponto de vista ambiental não chega a ser um alento).
É fácil considerar que não há melhor alternativa. Cortina de Fumaça, filme da empresa Brasil Paralelo, busca mostrar como o agronegócio brasileiro conjuga pesquisa, tecnologia e globalidade, ou seja, como encarna uma modernidade que teria viabilizado a produção de grãos em larga escala num terreno severamente hostil. Lá onde havia falta agora há fartura, sugere o filme, e, para assegurar que não há dano ambiental, aparecem os Parecis, que têm se dedicado ao cultivo da soja no Cerrado e seriam impedidos de exportar sua produção por “barreiras culturalistas”. Essas barreiras são apresentadas detidamente em A esperança se chama liberdade e teriam sido erigidas por outro projeto de modernidade, do qual o ambientalismo seria uma face. Afastada a cortina de fumaça do ativismo, argumenta o Brasil Paralelo, o que vemos é que a agroindústria brasileira é ecológica e imprescindível tanto para o ‘desenvolvimento nacional’ quanto para a ‘segurança alimentar’ global.
Podemos imaginar que o fato de o Brasil Paralelo compor o que temos chamado de bolsonarismo fará a audiência descartar de partida sua interpretação, por seu descompromisso com qualquer tipo de verdade. Mas a imaginação dessa reação se aplica, a meu ver, justamente à parte dos brasileiros que tende a não ser a audiência do filme.
Para o que tende a ser sua audiência, a interpretação me parece potencialmente plausível já pela construção, na abertura, dos meios pelos quais se produziriam sua imparcialidade. Eles passam pela forma de financiamento - privado, por sucesso da empresa, sem Lei Rouanet -, pelo reconhecimento do caráter polêmico do tema e pela perspectivação do problema. O modo como as opiniões são apresentadas também contribui para a produção de um efeito de racionalidade da interpretação que o Brasil Paralelo oferece. Quem fala são políticos, como a ministra Damares Alves e o ex-ministro Aldo Rebelo, e também personagens com chancela acadêmica, como Alysson Paulinelli, ex-ministro da Agricultura do governo Geisel e um dos fundadores da Embrapa, Xico Graziano, que foi professor na Unesp/Jaboticabal, além de advogados, antropólogos, entre outros. São opiniões diferentes, mas não concorrentes, que, apresentadas como peças de um mosaico, sucedem-se no filme compondo uma interpretação da história recente do Brasil. O uso de uma linguagem técnica pelos entrevistados e o desconhecimento de como o conhecimento científico é produzido facilitam acreditar quem fala.
Vale para várias questões contemporâneas que envolvem a relação entre ciência e espaço público: não há nada de auto-evidente e, com frequência, há muito pouco de intuitivo no conhecimento científico. Como afirma Hannah Arendt, cientistas se movem em um mundo de sentidos não compartilhados, ou, na síntese de Sophia Rosenfeld, de senso incomum. No caso do Cerrado, por exemplo, a soja é uma riqueza visível; a relação entre a água que raízes profundas retêm, o regime de chuvas e a manutenção de lençóis freáticos e aquíferos no país não está à vista. Ela é evidenciada pela ciência. A invisibilidade, o caráter construído da relação causal e o fato de a ciência ser um domínio de sentidos estritamente compartilhados põem dificuldades à circulação e à compreensão da narrativa de cientistas em comparação com a daqueles que falam ao Brasil Paralelo sobre agronomia e ecologia. É, em algum grau, nesse espaço que opera o negacionismo climático.
Com essa afirmação, não quero eu mesma negar que aquilo que chamamos de negacionismo passa pela recusa das mudanças que uma compreensão do problema moralmente implicaria. Por outro lado, penso que parte dos problemas que afetam a democracia na atualidade passa pelo fato de nos encontrarmos em universos comunicacionais distintos e inconciliáveis. O filme do Brasil Paralelo pode ilustrar bem essa ideia difícil de formular se tomamos a categoria "segurança alimentar", que circula tanto pelo agronegócio quanto por instituições globais e ONGs: o sentido que lhe emprestam no filme é irredutível, por exemplo, àquele que a categoria assume em matéria de direitos humanos.
Nada disso significa que não há caminhos. Se parte do problema é que a distância entre o senso incomum no qual cientistas se movem e o nonsense às vezes é menor do que aquela que separa as ciências do senso comum, os caminhos passam por encontrar formas de construir sentidos compartilhados. Como Arendt argumenta, histórias são uma forma pela qual podemos dar sentido ao singular e ao absurdo. Há boas histórias de cultivos e usos alternativos do espaço, como aquelas reunidas no documentário Sertão Velho: Cerrado, dirigido por André D’Elia, e a do agricultor e pesquisador suíço Ernst Gotsch, em outra reportagem de João Fellet para a BBC. Essas histórias têm o condão de transformar ciências em experiências com as quais muitos podem se conectar e de facilitar, em qualquer caso, o acesso ao conhecimento científico.
Gosto tanto de Sertão Velho: Cerrado quanto da matéria de Fellet (duas peças, claro, muito diferentes uma da outra). Em parte porque andei às voltas com O manifesto das espécies companheiras, de Donna Haraway, e tenho lido The mushroom at the end of the world, de Anna Tsing, nas horas vagas, hoje um elemento me chama a atenção na matéria de Fellet: é a dissolução por Gotsch do excepcionalismo dos seres humanos em relação a outras espécies, argumentando, de forma simples e sedutora, que somos seres inteligentes em um sistema inteligente e seremos mais inteligentes se percebermos a inteligência do sistema em que nos inserimos. Em outras palavras, podemos aprender nele.
Pensando com Haraway e Tsing, um ponto de partida nesse aprendizado é a percepção das relações multiespécie que ele encerra. Essa percepção surte efeitos jurídicos, como quando a Corte Suprema de Justiça da Colômbia afirma o status de sujeito de direitos da Amazônia ou quando o Superior Tribunal de Justiça interpela o 'paradigma antropocêntrico' dos direitos humanos para justificar a aplicação de direitos humanos a animais. Uma questão é como obter adesão social à ideia que informa essas decisões: a de que, como afirma Bruno Latour, precisamos aterrar, orientarmo-nos politicamente por um horizonte terrestre.
Muito obrigada pela leitura! Está sendo bom retornar a esse material a partir do debate público. Espero que ele também lhe aproveite.
Um abraço,
Renata Nagamine