Migrantes e o direito
A propósito do Dia Internacional dos Direitos Humanos, reflito sobre a relação entre migrações e direito, uma questão que segue ganhando contornos dramáticos em todos os continentes
Por Renata Nagamine
No final de novembro, a Folha de S. Paulo noticiou a morte de 27 migrantes em um naufrágio no Canal da Mancha. O episódio é chocante, e sabemos que não se trata de um caso isolado. Por um lado, são recorrentes as notícias de mortes e de travessias dramáticas do Mediterrâneo, crescentemente policiado. Por outro, demandas de migrantes - termo pelo qual me refiro a migrantes econômicos, refugiados e diaspóricos - têm suscitado tanto processos conflituosos de reconfiguração do nacional quanto disputas acerca dos nomes pelos quais se designam certos agrupamentos humanos. Suas demandas têm o potencial de importar na reconfiguração do que podemos chamar de identidades, sejam essas identidades nacionais, sejam relacionadas com filiações não nacionais. E o direito pode cumprir papel importante nesse processo.
Migrantes em massa e o “direito a ter direitos”
Em “Nós, refugiados” , ensaio de 1948, Hannah Arendt trata da condição daqueles que, por serem principalmente judeus ou comunistas, tinham se deslocado de seu país de origem para habitar outro e não mediam esforços para se assimilarem. Fala por experiência. Àquela altura ela era apátrida, tinha perdido a nacionalidade alemã, era formalmente refugiada, portadora do passaporte Nansen, emitido pela Liga das Nações. Estava cercada de judeus e comunistas que tinham fugido do nazismo e migrado para a França, os Estados Unidos, a Palestina.
Em um famoso capítulo de Origens do totalitarismo, de 1951, Arendt amplia seu objeto de análise e se debruça sobre o fenômeno da migração em massa na Europa do entreguerras. Ela mostra, no livro, ao menos dois dos seus efeitos.
Primeiro, Arendt percebe que a migração em massa torna indistinto, na prática, o status formal de refugiado, apátridas, estrangeiro residente e cidadão naturalizado. Tudo acaba se dissolvendo na condição de "estrangeiro ilegal", ao qual não era garantido qualquer direito. Essa dissolução deixa claro, para Arendt, que mesmo na França, a despeito da sua famosa Declaração Universal, só era sujeito de ‘direitos do homem’ aquele que era cidadão, ou seja, os ‘direitos do homem’ não eram universais para além da cidadania: eram válidos no espaço da cidadania, o qual não se confundia com o território estatal. Por um lado, a cidadania circunscrevia o espaço de igualdade perante a lei; por outro, era um efeito da inserção em uma comunidade na qual se era julgado por palavras e atos, não por traços ou atributos visíveis ou audíveis. No pensamento arendtiano, essa inserção é uma condição de possibilidade dos direitos humanos, e Arendt buscou conferir-lhe inteligibilidade com a fórmula "direito a ter direitos".
O segundo efeito da migração em massa que merece a atenção de Arendt é a ascensão das polícias em países não totalitários. Esses países não tinham um lugar em que alocar os sem-direito a ter direitos. Sua permanência no território nacional era ilegal, mas eles não podiam ser presos, pois não tinham praticado qualquer crime e eram muito numerosos para serem reunidos aos presos comuns. Na época, sua deportação não era ilegal. O princípio do non-refoulement, ou do não rechaço, tinha sido escrito em um tratado de 1933 relativo ao tratamento de judeus expulsos da Alemanha, mas não era uma norma geral e amplamente aceita. Além disso, a deportação dos refugiados em massa no entreguerras seguia sendo uma impossibilidade prática por eles serem indesejados em seu país de nacionalidade. As polícias empurravam, assim, os sem-direito a ter direitos de um lado para o outro das fronteiras nacionais, gerando tensões crescentes ao menos até a constituição dos campos de concentração e de internamento.
Arendt argumenta que a cooperação oficial ou oficiosa entre as diferentes polícias nacionais, inclusive entre aquelas de países inimigos na guerra, resultou na deportação seguida da concentração em países totalitários e no internamento em países não totalitários. Um e outro eram espaços de dominação crua sobre “corpos nus”, em que o poder incidia fazendo morrer e deixando viver. O conceito de necropolítica, elaborado por Achille Mbembe com base no pensamento de Arendt, de Michel Foucault e de Carl Schmitt, tenta dar conta dos efeitos desse poder que circula entre não sujeitos de direitos, como no Holocausto, mas também em antigas colônias europeias na África e em campos na atualidade, fazendo morrer e deixando morrer certos corpos, em certos espaços, para fazer viverem outros.
O arcabouço jurídico internacional no pós-Segunda Guerra mundial
Em algum grau, o esforço pela garantia de direitos no pós-Segunda Guerra tem se orientado pela ideia de oferecer algum espaço de igualdade a migrantes. Nesse período construiu-se todo um arcabouço jurídico internacional, com efeitos nos territórios nacionais, para a afirmação e proteção dos direitos de refugiados e apátridas.
Já a Declaração Universal sobre Direitos Humanos, de 1948, afirma que todo ser humano, em todos os lugares, tem o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei (art. 6), que todo ser humano tem o direito de sair de qualquer país, inclusive do seu país de origem (art. 13), e que todo ser humano vítima de perseguição tem o direito de gozar de asilo em outros países (art. 14). Não há um direito de ingresso no território de outro Estado que não o de nacionalidade, mas há um direito de partir, ou seja, nenhum Estado por proibir que seus nacionais saiam e e um direito internacional à personalidade jurídica.
A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, ou Convenção de 1951, ecoa a ideia de que todos são sujeitos de direitos à luz do direito internacional e constrói um arcabouço para a proteção dos refugiados partindo da experiência dos apátridas que Arendt descreve. A convenção afirma que é refugiada qualquer pessoa considerada como tal no entreguerras e toda aquela que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1951, esteja fora de seu país de nacionalidade e não queira retornar a ele por ser ou por temer ser vítima de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou grupo social. Nessa hipótese, os Estados obrigados internacionalmente pela Convenção estão proibidos de rechaçar o refugiado, a menos que ele seja considerado um perigo para sua segurança (art. 33).
Os limites espaciais e pessoais do estatuto de refugiado estão implícitos nessa definição e no modo como ela foi aplicada, alcançando os que fugiam da Segunda Guerra mundial e os que eram perseguidos por governos totalitários. Como mostram os trabalhos preparatórios da Convenção de 1951, não escapou a plenipotenciários de países do Terceiro Mundo que palestinos sem-cidadania no recém-constituído Estado de Israel, em 1948, os sem-Estado no processo de partição entre Índia e Paquistão, também em 1948, ou os coreanos deslocados em função da guerra entre 1950-3 ficariam fora do seu alcance. A imaginação que informa a Convenção parece sobrepor a Europa à humanidade assegurando o refúgio apenas a pessoas pertencentes a grupos procedentes de países europeus e àqueles que fugiam do socialismo.
Na dinâmica da guerra fria, a Convenção desponta como um instrumento de embaraço aos países socialistas, e é difícil ignorar a geopolítica em que ela está inscrita. Por força de países do Terceiro Mundo, uma ampliação do âmbito de aplicação do refúgio tem lugar com o Protocolo de 1967, adicional à Convenção de 1951. Com o Protocolo, qualquer pessoa que esteja fora de seu país de nacionalidade e não queira retornar a ele por ser ou por temer ser vítima de perseguição em função de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou grupo social passa a fazer jus ao estatuto, e os Estados obrigados pela Convenção continuam proibidos de expulsá-la de seu território.
Essa mudança no direito internacional se dá em pleno processo de descolonização e será especialmente importante no pós-guerra fria, em função de conflitos armados internacionais, de conflitos não internacionais e da globalização, que, por um lado, aumentou a desigualdade entre os Estados e, por outro, facilitou a circulação de bens, ideias e certas categorias de pessoas. Um aspecto crucial para compreender o problema dos deslocamentos humanos nos nossos tempos é perceber que os ganhos em transporte e comunicação entre diferentes partes do globo não facilitou aos migrantes econômicos, isto é, àquelas pessoas que se deslocam em busca de melhores condições de vida ingressarem em seus países de destino. Tem-se tentado encaminhar o problema mediante o direito internacional, com a Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e o Pacto Global, mas, ao menos por ora, sem sucesso.
Deslocamentos humanos no pós-guerra fria e a questão multicultural
Crescentemente, refugiados percorrem as rotas de migrantes econômicos em sua fuga da perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou grupo social. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados, ou ACNUR, tem usado o termo "fluxos migratórios mistos" para dar conta do fenômeno. Este compreende, por exemplo, os deslocamentos de pessoas através do Mediterrâneo, mas também aqueles no continente americano, por exemplo, no caso de pessoas que atravessam o México vindo da Guatemala e da Venezuela para os Estados Unidos.
Como o direito internacional proíbe o rechaço dos solicitantes de refúgio e dificilmente se pode distingui-los de pronto dos migrantes econômicos, os Estados atuam para dificultar o ingresso de estrangeiros não turistas em seu território mediante (i) a construção de barreiras físicas, como "muros", que são sinais gráficos da intenção de reposição das fronteiras; (ii) forte policiamento das fronteiras terrestres e dos espaços marítimos, como o Mediterrâneo; (iii) a construção de centros de detenção e campos de refugiados. Como se pode notar, centros, campos e o governo dos sem-direito a ter direitos por forças policiais seguem sendo tecnologias para lidar com o problema dos migrantes em massa - sejam eles deslocados forçados, sejam migrantes econômicos - num mundo formado por Estados nacionais.
As respostas estatais aos fluxos migratórios deixam ver um processo de securitização. Ele é mais visível em relação aos fluxos do Sul para o Norte global e encontra uma ilustração na prática da Austrália de manter migrantes em detenção por longos períodos na ilha Manus, da Papua Nova Guiné. Porém, ocorre também no Sul global, como no caso da política sul-africana para refugiados de outros países do continente. É interessante que tanto a Austrália quanto a África do Sul acolhem, por exemplo, pessoas LGBT vítimas de perseguição em função de sua orientação sexual, e ambas articulam suas respostas aos desafios postos pela questão migratória com base num paradigma securitário, isto é, com base na construção dos migrantes, para dentro e para fora dos Estados, como uma questão de segurança nacional. Como entender que essa construção tenha ressonância em diferentes sociedades nacionais?
Migrantes em geral se deslocam de seus países de origem por motivo de conflitos armados, de perseguição ou de condições econômicas. Não raro são “vidas precárias”, tomando emprestado um conceito de Judith Butler que desloca o de vida nua para designar aqueles que são desprovidos de proteção legal e cuidado na vida social, mas não de agência, cuja manutenção não é garantida por políticas estatais de bem-estar e cuja existência é posta em risco por diferentes formas de dominação, inclusive aquelas que distribuem desigualmente a precariedade entre os países.
Essa dimensão importa porque a justificação da securitização do problema migratório compreende a relativização da justiça da motivação econômica em relação às prerrogativas da soberania. Para os Estados nacionais e para o direito internacional, a privação de meios de vida não é equiparável à perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou grupo social, e o fato de a privação em determinadas partes do globo ser uma experiência largamente compartilhada concorre para que os despossuídos não conformem um grupo social para fins de concessão de refúgio.
É difícil, no entanto, compreender a percepção de migrantes como uma ameaça quando se considera que eles comumente se dispõem a trabalhos recusados por nacionais e se destinam a países com baixo crescimento ou decrescimento populacional. Sabe-se, ademais, que eles não comprometem nem empregos, nem renda dos nacionais e estrangeiros legais em países do Primeiro Mundo ou desenvolvidos. O supremacismo branco é, por fim, uma ameaça maior à segurança nacional dos países do Norte na atualidade do que o terrorismo islâmico. Tudo isso posto, um caminho para entender a persistência daquela percepção pode ser pensar a cidadania no Estado-nação como uma identidade etnicizada e os migrantes, dentro dos Estados, como a encarnação do imperativo por multiculturalizar a cidadania.
O problema está tematizado há décadas pelos estudos pós-coloniais, que se debruçam sobre a reconfiguração do mundo com cerne nos efeitos de poder das práticas coloniais. Em diferentes sociedades, migrantes e seus descendentes demandam igualdade de fato perante a lei e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de suas diferenças. Essas diferenças são habitualmente construídas como biológicas, no caso da raça, ou como culturais, no caso da etnia.
Contudo, raça e etnia são registros que operam em um mesmo sistema, e não duas lógicas distintas. Por mais que o racismo se pretenda biológico, suas construções discursivas fazem ver na cultura as diferenças, ao passo que as construções discursivas das diferenças étnicas buscam fazê-las ver em características físicas. Ilustra-se: produz-se da África uma imagem de homogeneidade em função da cor, desconsiderando a pluralidade do continente em termos étnicos, raciais e religiosos; em nosso imaginário o Islã é associado a árabes e a uma inclinação natural à violência, embora a maioria dos muçulmanos não se engaje no ativismo armado. Temos nessas ilustrações dois registros do racismo, isto é, de um sistema de poder que articula natureza e cultura e que tem por efeito tanto a dominação econômica quanto a estratificação social.
Para a resistência à dominação e para a arbitragem de conflitos, os direitos podem ser úteis. Tome-se, por exemplo, a discussão sobre a poligamia, que suscitou polêmica na Europa, em particular na Alemanha. Trata-se de uma prática comum entre refugiados sírios e legal em seu país de origem que conflita, porém, com os costumes e com o direito alemão. Este, ao mesmo tempo, interdita a prática da poligamia, e reconhece os títulos e as leis estrangeiras. Já para os refugiados em formações familiares poligâmicas, a situação é desejada e consumada, quando eles chegam ao país casados, e a polêmica se instaura justamente porque querem seguir vivendo como lhes era permitido viver na Síria, mas agora na Alemanha, onde vige um interdito ao seu modo de vida familiar.
O arranjo familiar poligâmico dos refugiados evidencia um elemento normativo entrincheirado no direito alemão, uma concepção de Bem escamoteada nele, a qual fica explícita quando se argumenta que, se “eles” querem viver na Alemanha, têm de viver como os alemães, o “nós” do Estado-nação. Essa concepção de Bem aparece, no caso, como um limite à regulação individual da vida doméstica.
É um tipo de limitação que se justifica quando o Estado atua para assegurar a autonomia individual de uns indivíduos em relação a outros, ou seja, justifica-se em resposta a relações de dominação informadas por hierarquias sociais, como é o caso em questões de gênero. Pode-se supor, nessa linha de argumentação, que há, em relação aos arranjos poligâmicos, uma assimetria entre homens e mulheres e que essa assimetria viola o valor que os alemães atribuem à autonomia. Tanto é assim, pode-se seguir argumentando, que não há qualquer interdito a relações abertas, em que ambos no casal podem ter múltiplos parceiros. A intervenção do Estado se justificaria pela correção da assimetria de gênero: não é que as relações não possam ser consentidas, e sim que se pode questionar o valor do consentimento das mulheres considerando as relações entre os gêneros.
Esse questionamento encontra, no entanto, um limite no fato de que, em qualquer sociedade, os sujeitos que consentem e também os que julgam aqueles que consentem se constituíram em meio a relações de poder, as quais estruturam as relações entre gêneros, religiões, raças, etnias, nacionalidades. Vale para sírios, vale para alemães. Um desafio é conciliar a diferença dos refugiados sírios no que se refere à família e a tudo que a atravessa, como o gênero e a religião, em relação aos alemães.
Nessas situações, os direitos podem funcionar como mediadores culturais. Eles têm múltiplos registros. São operados por instituições internacionais, nacionais e por sujeitos - nacionais e estrangeiros - que os acionam para tornar as diferenças culturais, de arranjos familiares, de gênero e outras, inteligíveis aos outros. Tais usos possibilitam pensar que, se por um lado os direitos representam limites e são, por essa razão, tensionados com os deslocamentos, por outro importam porque podem abrir espaço para a arbitragem dos conflitos e tornar as diferenças comensuráveis no cotidiano. Em poucas palavras, podem facilitar a compatibilização de demandas particularistas sem reduzir umas às outras. Em casos como o da poligamia em uma sociedade idealmente monogâmica, podem propiciar a articulação de múltiplas diferenças, a produção de uma igualdade nas diferenças, sem dissolvê-las em uma universalidade substancializada, ou em uma particularidade travestida de universal.
O potencial dos direitos em situações como essas está ligado ao fato de eles serem uma linguagem, isto é, um artefato cultural no qual tanto os conflitos se configuram quanto os sujeitos se formam. As demandas de migrantes que se articulam nessa linguagem têm suscitado processos conflituosos, com potencial tanto de reconfigurar o nacional quanto de ressignificar os nomes pelos quais se designam certos agrupamentos humanos. Isso não significa que as sociedades não fossem multiculturais anteriormente. Significa que migrações têm tensionado o que podemos chamar de identidades, sejam nacionais, sejam relacionadas com filiações transnacionais, como aquelas que se constroem em função da raça, da nacionalidade, da religião, da sexualidade ou da opinião política.
Ótimo Renata! Super intrigante o atrito entre a poligamia de migrantes sírios e a legislação/cultura alemã. PS: adorei as artes da Ludmila :)