Por Renata Nagamine
Às vésperas dos 199 anos da Independência do Brasil, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos convoca em uma mídia social às manifestações de 7 de setembro. Pede que os manifestantes orem ao passarem por policiais militares, estendendo a mão sobre eles, a ungi-los. São as instituições funcionando.
Em afronta à forma republicana de exercício do poder inscrita na Constituição, o presidente convoca as manifestações há dois meses e participa em seus atos preparatórios, que, pela falta de gente e pela sobra de certa masculinidade, ganharam a forma de ‘motociatas’. O bolsonarismo busca, com essas manifestações, uma forma estética da nação, na Paulista, em Brasília, em Copacabana, e compatibiliza em cena forças da ordem, aquelas que reivindicam falar em nome da Bíblia, em defesa da sociedade e da família. Não por acaso, o presidente evoca, em seu discurso à multidão na Paulista, duas fórmulas católicas, ao declarar que está no meio deles e que o amor pelo Brasil os uniu. Menos casual ainda é que representantes dos demais Poderes republicanos, nomeadamente o Legislativo e o Judiciário, marquem ausência na cerimônia oficial, em Brasília: nas nossas circunstâncias, ladear o presidente é dar consentimento à sua política anticonstitucional, e ausentar-se aparece, então, como uma forma de protesto respeitosa da lei, que conta com a sociedade para fazer ver o que está em jogo.
Falar em produção da nação nessas circunstâncias, a propósito das manifestações capitaneadas pelo presidente, é pensar numa formação que resulta de processos comunicacionais e a qual, em determinado momento, pode-se ser instado a oferecer uma tradução visual1. Esse entendimento comporta alguns desdobramentos. Um deles é que o bolsonarismo não é irrelevante por não levar uma multidão às ruas, mas perceber que ele não tem capacidade de obter a adesão dos números ajuda a entender como ele funciona, sua relação com a violência, a construção das suas narrativas e os usos dos meios de comunicação.
Interessa ao bolsonarismo a produção da nação em cena tanto quanto circular o registro dessa cena. Seu registro, sobretudo em fotografia, é produtor de imagens que enquadram o real pelo desejo e tornam o real desejado algo objetivo pela circulação em um circuito composto por redes que se formam em mídias sociais, em aplicativos de mensagens e com órgãos da mídia tradicional integrados ao bolsonarismo, como o SBT e a Jovem Pan. Por isso o presidente convoca os presentes na Paulista a produzirem as suas imagens da manifestação e a fazê-las circularem: a ideia é que elas representem o poder tal como ele foi experimentado no meio da massa e que a experiência da massa se torne uma instância de verdade concorrente com a imprensa (no caso, com as pesquisas de opinião, mais especificamente).
É parte dessa forma de representação política tensionar, no limite da ruptura, a relação entre o poder do presidente com os demais Poderes republicanos, e é instigante que, nela, o conservador ministro Alexandre de Moraes apareça como o antagonista presidencial. Já manifestantes nas ruas no 7 de setembro são, ao mesmo tempo, contra a 'ditadura do STF', a 'ditadura da toga', e a favor da 'intervenção militar'. Quantos não apareceram nos atos cobertos com o pavilhão da monarquia e exaltando a ditadura em plena Independência do Brasil?
Há tensão entre os termos; mas um dos desafios que o bolsonarismo põe, ao lado de buscar sentido onde não há, é redimensionar o princípio ético e lógico da não-contradição na comunicação social. Por um lado, é interessante perceber a racionalidade e as operações da imaginação em processos comunicacionais que funcionam emprestando plausibilidade ao absurdo. Por outro, é importante perceber que enunciações contraditórias, tais como denunciar uma ‘ditadura da toga’ e apoiar uma ditadura militar, são manifestações múltiplas de um desejo: o de refundar a ordem.
Como dito acima, os manifestantes têm se articulado há meses e se reuniram em 7 de setembro de 2021 em torno, ao mesmo tempo, de uma insatisfação compartilhada com a ordem constituída em 1988 e em defesa da ‘harmonia de poderes’ instituídos nessa mesma Constituição. Há seleção dos objetos de oposição. Será essa oposição relacionada com o que a Constituição tem de abertura ao futuro; com o que tem de perturbador de práticas históricas que constituem o país do qual o futuro com possibilidades costuma ser portador; ou com a sociedade pluralista que ela projeta como realidade? Os manifestantes, ‘conservadores e patriotas’ nos seus próprios termos, formam uma massa verde e amarela, bradam contra a principal instituição judicial do país, pedem o uso da força para a garantia da ‘harmonia entre os poderes’ em defesa da liberdade e da democracia, mas afirmam o caráter pacífico da reunião, e se reúnem sem máscara, apesar da ampla circulação da variante Delta do SARS-Cov-2 entre nós.
Em um tocante ensaio intitulado O sequestro da independência, publicado na Folha de S. Paulo, Heloisa Starling lembra que não sabemos quanto tempo uma sociedade aguenta sem futuro. Essa lembrança dispensa a historiadora de nos dar conta de que estamos sem futuro há algum tempo. Em aula no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFBA, no final do ano passado, Starling já tinha compartilhado, porém, sua impressão de que estamos no presente do país do futuro, ou seja, num momento em que estão perdidas as possibilidades que as gerações atuais um dia imaginaram serem suas e que deram forma a algum “nós”.
Só nos resta, então, buscar outros caminhos. O que o bolsonarismo oferece está claro, e Starling desfaz sombras de dúvidas quando caracteriza o reacionarismo como uma proposta de retorno a um passado idílico, idealizado, imutável e, portanto, a-histórico. Para não-bolsonaristas, buscar caminhos é, assim, abri-los. Por um lado, o ânimo para palmilhar e as condições de imaginar outro país passam pelo encontro espontâneo nas ruas, com todas as nossas diferenças, com tudo aquilo que nos separa, e também com aquilo que nos uniu ali, in loco, na ação. Uma das coisas que podemos aprender com a retirada do mundo em tese imposta pela pandemia é que a esperança é um modo de estar junto, e quem participou nas manifestações em 2018 e 19 no Brasil ainda pode ter guardados resquícios daquilo que Hannah Arendt chamou de felicidade pública. Por outro lado, uma pista a seguir nesse novo começo pode passar, de fato, por uma refundação da ordem: não da ordem desejada por bolsonaristas, e sim daquela que podemos constituir em ações que, por sua própria forma, em seu próprio curso, tornem real uma sociedade pluralista e neguem ao bolsonarismo o gozo com a morte.
É uma ideia, uma utopia branda retornar às ruas em nome do que quer que não seja bolsonarista e que, ao encontro espontâneo e ativo, nossas relações se reordenem tendo por princípio a memória das quase 600 mil pessoas mortas por Covid-19, a imaginação do mundo para sempre perdido com seu desaparecimento. É como desejo que comecemos a construir algo outro.
Esta ideia é de Aramis Luis Silva, doutor em Antropologia Social pela USP e pesquisador no Cebrap, com o qual tenho conversado sobre esses assuntos. Agradeço ao próprio Aramis, à Ludmyla Franca-Lipke e ao Serge Katembera pela leitura do texto.