Banal ou radical? Para pensar o mal no Brasil, 60 anos depois do julgamento de Eichmann
Um passeio por um conjunto de escritos de Arendt no intuito de dar uma ideia do que entendo por banalidade do mal e de fornecer elementos para refletirmos sobre os sentidos da sua circulação no Brasil
Por Renata Nagamine
Sessenta anos atrás Hannah Arendt, já uma intelectual consagrada, cobria o julgamento de Adolf Eichmann pela Corte Distrital de Jerusalém para a revista norte-americana The New Yorker. Da cobertura resultou o livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, publicado em 1963 e seu trabalho mais controverso. Em resenha escrita por ocasião dos 50 anos do livro, Adam Kirsch e Rivka Galchen associaram a polêmica que o cerca ao tom implacavelmente irônico de Arendt; mas sabemos de uma carta de Arendt em resposta a Gershom Scholem que o subtítulo do livro também foi uma questão. Ele sugeria a leitores e, sobretudo, a não-leitores que Arendt qualificava de banais os crimes contra judeus, ciganos, homossexuais que o governo nazista praticou ao deslocá-los da Alemanha e territórios ocupados, concentrá-los em campos e exterminá-los aos milhões.
Os sessenta anos do início do julgamento de Eichmann em Israel completam-se em meio a uma mortandade sem precedentes no Brasil e sem perspectiva de cessar. Essa conjunção parece pôr o conceito de banalidade do mal em circulação em mídias sociais, plataformas e colunas de jornais e revistas. Nos parágrafos seguintes pretendo tratar do conceito no pensamento arendtiano, no intuito de apresentar alguns elementos para pensar seu uso em nossas circunstâncias.
Arendt afirma que o conceito de banalidade do mal representa uma mudança de entendimento de sua parte. Uma década antes, em Origens do totalitarismo, publicadas em 1951, ela havia afirmado que os crimes praticados pelos nazistas contra judeus, ciganos, homossexuais, em particular seu extermínio em instituições fabricadas para esse único fim, eram difíceis de compreender, perdoar e punir. Constituíam, em outras palavras, um desafio aos três recursos de que dispomos para remediar o fato de que não há como desfazer o que foi feito. Eram crimes contra a humanidade, entre os quais se incluía o genocídio; eram atentados contra a pluralidade humana. Arendt refletiu sobre eles, em especial sobre a instituição que os operou - o campo de extermínio - com o conceito de mal radical, cunhado por Immanuel Kant e tratado por ele em A religião nos limites da simples razão. Nas Origens, o conceito emprestado de Kant ajuda Arendt a pensar aquilo que, em suas próprias palavras, não deveria nunca estar, nem jamais ter estado na política: o desaparecimento dos seres humanos por força de uma instituição que impõe um horror além da vida e da morte. Mal radical designa o horror que não tem utilidade, não se justifica sequer por motivos vis e se infunde para a sua própria reprodução pela produção de seres supérfluos e de mortes em massa. Por sua inutilidade e pelo risco de perecimento do mundo, tem sentido que se tente atribuir tais práticas à má disposição e tomá-las como males desejados.
Não é propriamente isso, contudo, que Arendt faz. Ela recorre ao conceito de mal radical para compreender o mal absoluto que o aparecimento do campo possibilitou. O funcionamento dessa instituição, de um lado, torna supérfluas as vítimas e, de outro, põe o autor às margens da solidariedade no pecado. Mas, em ao menos um momento do livro, o uso do conceito parece ser útil a Arendt para a crítica de uma tradição que tende a conceber o mal como ausência do bem, mais do que expressa uma percepção sua de que ele é adequado à compreensão do fenômeno. O fenômeno, afirma, desafia padrões de julgamento e categorias de pensamento da tradição. Arendt usa, em suma, o conceito de mal radical para entendê-lo, mas não no sentido que, segundo ela, Kant lhe teria emprestado[1]. Então, ao mesmo tempo que se socorre do conceito, ela lhe confere sentido próprio, marcando distância do que lhe parecia ser uma hesitação de Kant: este teria “racionalizado” o fenômeno do mal apelando à ideia de perversão da vontade. Dito ainda de outro modo, Arendt tem, já nos anos 1940 e início dos 50, a percepção da novidade de um mal extremo - o desenvolvimento de tecnologia para a produção de seres supérfluos - e o enquadra lançando mão de um nome da tradição, mas não atribui a esse nome o sentido que essa tradição lhe empresta. “Radical”, já nas Origens, significa “absoluto”, e não “enraizado”.
Não surpreende, portanto, que, ao encontro com Eichmann na condição de espectadora do julgamento em Jerusalém, Arendt tenha percebido nuances do fenômeno e procurado dar uma forma melhor a seu entendimento. O conceito de banalidade do mal reflete seu movimento do pensamento e oferece outra compreensão do mal em um mundo no qual o totalitarismo se tornou para sempre uma possibilidade e elementos totalitários - como a solidão e a operação da política pela lógica da propaganda a ponto de transformar a textura do real - encontram-se até mesmo em sociedades democráticas. Um mundo pós-totalitário.
Para compreendê-lo, cabe retornar ao segundo capítulo de Eichmann em Jerusalém. Nele, depois de descrever a arena em que o julgamento transcorreria, Arendt se detém na história de Eichmann e nas práticas do acusado durante as sessões. Apresenta-o como um burocrata que construiu a carreira com pequenas mentiras, moderada ambição e muita eficiência no deslocamento de judeus alemães e de territórios ocupados para os campos de concentração. Arendt destaca, no entanto, que, ao contrário do que poderia fazer crer a eficiência de Eichmann, ele se juntou ao Partido Nacional Socialista e entrou para a SS não por convicção antissemita, e sim por contingência: o filho de um amigo de seu pai lhe ofereceu uma oportunidade em época de dificuldade financeira. Eichmann era, para todos os efeitos, um sujeito normal, nem sádico, nem louco, nem fanático, e inteligente o suficiente para perceber que as ordens de Hitler tinham força de lei. Cumpria-as porque tinha capacidade e por reconhecer na obediência à lei um valor per se.
A relação com a lei e o direito é um elemento privilegiado por Arendt em sua análise do totalitarismo. Ela o desdobra (i) na subversão da legalidade em regimes totalitários, em que Matarás! se torna um mandamento, e (ii) na obediência acrítica a essa legalidade subversiva da pluralidade, isto é, do que Arendt vai considerar ser a lei da terra. Não é casual, por isso, que lhe chame a atenção nas falas de Eichmann a positividade do cumprimento de ordens com força de lei, mesmo depois dos julgamentos pelo Tribunal de Nuremberg, dos quais ele tinha conhecimento. Outro aspecto central da descrição arendtiana, ao lado da reiteração por Eichmann do cumprimento de ordens como um sinal de obediência à lei e um valor positivo per se, é seu recurso farto a clichês. Em Eichmann em Jerusalém, Arendt explicita seu padrão linguístico.
Era uma preocupação antiga da autora, manifesta em “Ideologia e terror”, último capítulo das Origens, e em “Understanding and politics”, um ensaio em que ela argumenta que clichês, slogans, frases feitas contribuem para blindar os sujeitos em relação ao mundo, à potência desestabilizadora do real, e bloqueiam o entendimento, que está atrelado à experiência. Em sua cobertura do julgamento, em 1961, Arendt percebe na linguagem de Eichmann sua inabilidade de pensar e - como para ela pensar é dialogar consigo - também uma inabilidade de falar, ao menos de falar de forma reveladora. Não é pouca coisa, pois, para Arendt, a inabilidade de pensar implica uma inabilidade de imaginar os efeitos dos seus atos e, por conseguinte, de presentificar o mundo para si, de dar ao pensamento as imagens do mundo sobre as quais ele possa se debruçar.
A descrição que Arendt faz do acusado é informada, assim, por percepções e entendimentos seus contemporâneos das Origens. Porém, é só quando ela retorna à discussão a partir de seu encontro com Eichmann que se dissolve a imagem do criminoso totalitário como um monstro sádico e aparecem as formas que pode assumir a junção de eficiência, cumprimento irrestrito de ordens, respeito cego à lei e ausência de pensamento. Na já mencionada carta a Scholem, de 1963, Arendt esclarece seu entendimento do problema do mal a partir do julgamento em Jerusalém. Em sua correspondência, editada para publicação, lê-se:
De fato é minha opinião agora que o mal nunca é “radical”, que é apenas extremo e que não possui nem profundidade, nem dimensão demoníaca. Ele pode crescer e destruir o mundo todo precisamente porque se espalha como um fungo pela superfície. Ele é “desafiador do pensamento”, como disse, porque o pensamento tenta alcançar alguma profundidade, ir às raízes, e, no momento em que se ocupa do mal, ele é frustrado, porque não há nada. Essa é sua “banalidade”. Só o bem tem profundidade e pode ser radical. [It is indeed my opinion now that evil is never "radical," that it is only extreme, and that it possesses neither depth nor any demonic dimension. It can overgrow and lay waste the whole world precisely because it spreads like a fungus on the surface. It is "thoughtdefying," as I said, because thought tries to reach some depth, to go to the roots, and the moment it concerns itself with evil, it is frustrated because there is nothing. That is its "banality."Only the good has depth and can be radical. (Grifos meus, p. 471).]
Nessa passagem, Arendt afasta a ideia de que uma personalidade criminosa e de motivações profundas e arraigadas explicassem as práticas de Eichmann, as quais se tornam proibidas a partir de 1945-6 pela Carta de Londres, que instituiu o Tribunal de Nuremberg, por uma resolução da Assembleia Geral da ONU e por demais processos de transição na Europa. Sabe-se do Epílogo de Eichmann em Jerusalém que Arendt tinha consciência de que esse afastamento e a centralidade da ausência de pensamento na prática de crimes contra a humanidade desafiam o modo como o direito penal opera e a atribuição de responsabilidade criminal individual. Porém, diante de tais crimes, o caminho para ela é entender o novo tipo de criminalidade, aceitar a inadequação dos padrões vigentes e buscar validar o tratamento sem precedentes dele, ou seja, a punição sem lei anterior que previsse o crime. De meados dos anos 1960 até a sua morte, em 1975, Arendt se dedica, então, a “tratar desses assuntos em um outro contexto e em maior profundidade”, como fala a Scholem. Reflete sobre o pensar e sua relação com o mal.
Não era sua primeira incursão por essas veredas. Datam dos anos subsequentes à publicação das Origens escritos de Arendt sobre o pensar, entre os quais “Understanding and politics”, já mencionado, e o ensaio “Philosophy and politics”, ambos elaborados a partir de seis palestras sobre a relação entre a tradição e a natureza do totalitarismo que ela proferiu na New School for Social Research em 1953.
O primeiro dos dois ensaios aborda a compreensão, que, para Arendt pensando com Sócrates, é a forma propriamente humana de existir, da qual resulta não uma verdade, mas uma reconciliação sempre contingente com o mundo, com a relativa objetividade dele, isto é, com o fato de as coisas serem como são. Não se trata de resignação, mas de uma aceitação ativa, que remedia o fato de que não se pode desfazer o que foi feito e abre espaço para um novo começo. Compreensão também não se confunde com conhecimento - orientado por uma ideia de verdade como correção -, embora tenha relação com ele, ou, ao menos, com um conhecimento que se pretenda útil e por isso se dispõe a se relacionar com o universo de sentidos largamente compartilhados. Em uma passagem de “Understanding and politics”, Arendt afirma, enfim, que a compreensão, a qual requer tanto da sensibilidade quanto do intelecto, é a imaginação, uma faculdade que pode tanto aproximar o que é distante quanto afastar o que está demasiado próximo. Nos dois casos, facilita uma visão mais clara daquilo que é, sem dissolver o que é num mundo de objetos e fenômenos conhecidos, ou seja, sem sacrificar-lhe a novidade.
Em “Philosophy and politics”, segundo ensaio da sua produção imediatamente posterior às Origens, Arendt trata do pensamento e da ação, uma relação que ela articula com os conceitos de verdade e opinião. Seu ponto de partida é a alegoria da caverna, que abre o livro VII da República. Na leitura de Arendt, Platão opõe, na alegoria, verdade - um absoluto que orienta tanto a ciência quanto a filosofia - e opinião, as múltiplas sombras projetadas na parede da caverna, as quais são tudo o que os homens comuns veem. Já Arendt tenta reconciliar verdade e opinião para restabelecer a positividade desta e, por conseguinte, da política, entendida como o domínio das opiniões. Para tanto, reflete sobre a forma de ação de Sócrates na cidade, junto a seus concidadãos: o diálogo. O Sócrates arendtiano é sábio por saber que não é dado aos mortais conhecer a verdade e que o acesso de cada um ao mundo está ligado à sua posição nele. Em termos mais contemporâneos, para Arendt, o acesso ao real é perspectivado, porque o mundo se abre a cada um de uma maneira e uma só maneira, e um dos efeitos dessa condição é que a realidade se estabelece pelo concurso de perspectivas, cabendo, então, a cada um compreender a abertura do mundo para si e dar a compreender essa abertura aos outros. O papel que Sócrates assumiu foi o de facilitar essa compreensão mútua, o que leva Arendt a considerar que ele se dedicou a tornar amigos os atenienses.
Em sua empreitada, Sócrates se guiou por dois insights, afirma Arendt. O primeiro é uma das inscrições no oráculo de Apolo em Delfos, o famoso conhece-te a ti mesmo, o qual Sócrates teria entendido perfeitamente: tenha consciência de sua condição de mortal e de que essa condição implica não ter acesso à verdade absoluta. O segundo insight é que é melhor estar em desacordo com o mundo todo do que, sendo um, estar em desacordo comigo mesmo. Arendt se demora nesse insight, em especial na ideia de que ele indica que somos um para o mundo e no mundo, quando estamos entre outros, e somos dois a sós, quando cada um fala consigo mesmo. Quando temos esse diálogo, argumenta, nós aparecemos a nós mesmos, e, porque aparecemos a nós mesmos, é ilógico para Sócrates que alguém pratique o mal tendo conhecimento do mal e desejando praticá-lo, pois isso é o mesmo que desejar conviver intimamente com um malfeitor. Essa convivência seria inevitável para Sócrates: embora sempre reste a possibilidade de não entabular qualquer diálogo consigo, uma vida sem esse diálogo é uma vida sem sentido, ou seja, ele não a concebe.
Para a espectadora atenta e arguta de seu julgamento, Eichmann encarna, no entanto, o alheamento a qualquer diálogo consigo mesmo. Ele é, dessa falta de intimidade com o pensar, um modelo. Arendt o percebe pela superficialidade de suas falas, pela falta de aderência delas ao mundo, pelo fato de elas revelarem um padrão, não um ponto de vista. O encontro com Eichmann na Corte Distrital de Jerusalém é decisivo para Arendt, de um lado, porque nele a superficialidade contrasta, em cena, com a abrangente devastação do mundo, posta e reposta pelas vítimas que testemunham no julgamento, e, de outro, porque o não-pensamento se revela tanto na produtividade do padrão evidenciada na linguagem do acusado quanto na afirmação da obediência como um valor per se. Em sua produtividade e positividade, o padrão parece materializar, assim, o não-pensamento, para Arendt.
A autora reflete sobre o problema nos anos 1960 e 70 retomando seus escritos dos anos 1950, entre os quais destaco em “Thinking and moral considerations” e em suas lições sobre a filosofia política de Kant, reunidas postumamente em Lectures on Kant’s political philosophy. Como estudiosos do pensamento arendtiano costumam alertar, essa é uma discussão que Arendt morreu sem concluir, mas me parece que, ao menos em relação ao pensar, ela nos legou o suficiente para seguir conversando. Em linha com seu “Filosofia e política”, de 1954, no ensaio “Pensamento e considerações morais” e nas suas Lições, ela caracteriza o pensamento como um diálogo de si consigo mesmo no qual se examinam dados da experiência, crenças, dogmas, as opiniões dos outros, aquilo que comunicam e os próprios pensamentos. Nesse diálogo, afirma Arendt, nós representamos a nós mesmos tudo o que se apresenta aos nossos sentidos, o que ordenamos por esquemas e entendemos por conceitos. Ou: ao pensar, representamos para nós mesmos o mundo e as perspectivas pelas quais ele se nos deixa ver através dos outros. Saímos em visita, Arendt afirma com Kant, e dessa visita pouco resta em pé, pois o pensamento tende a destruir aquilo de que se ocupa, sem cuidar de pôr qualquer coisa no lugar.
Em outras palavras, o pensamento se debruça sobre aquilo que experimentamos mas nos falta aos sentidos no momento em que pensamos. Como o desejo, recai sobre o que está ausente e é presentificado de outra forma. Esta outra forma é a imaginação, uma faculdade entreposta à sensibilidade e ao intelecto que constrói pontes com o que está distante e afasta o que está demasiado perto. Ela ordena dados sensíveis, dá imagens ao pensamento e exemplos ao juízo. Eichmann, como Sócrates, era um exemplo para Arendt: o antípoda de Sócrates. Então, de um lado, o pensamento é um vento fresco que tudo varre, e de outro, ao pensar, contamos com a imaginação, cujas imagens ao pensamento podemos julgar como certas ou erradas, justas ou injustas, belas ou feias. Sendo assim, o pensamento tende a pôr tudo ao chão e por isso também pode refrear o engajamento com a prática do mal. Porém, não prescreve nada, não diz o que é o bem, o certo ou o justo. Mas o juízo, que recai sobre representações produzidas pela imaginação, erige critérios próprios a orientarem a ação. O caráter estreito da relação entre as faculdades de pensar e julgar, que Arendt ora confunde, ora diferencia, e ao qual nunca conseguiu dar acabamento, fica claro quando ela afirma, nas Lições, que pensar é ordenar, distinguir, separar o joio do trigo: em uma palavra, é krinein, julgar, verbo do grego antigo do qual deriva o nosso substantivo crítica.
Todos têm essas faculdades, o que significa que pensamento e julgamento não dependem de capacidades ou inteligência especiais, nem se confundem com formação ou conhecimento. Para Arendt, que pensa essas questões com Sócrates e Kant, trata-se do contrário. Uma de suas preocupações é entender como intelectuais aderiram ao nazismo e liberar o pensamento inclusive das barreiras que lhe erige o conhecimento. Pensar e não-pensar, para ela, não estão relacionados, pois, com uma capacidade ou uma incapacidade, mas, sim, com um hábito, um ethos, e com determinadas condições, como argumenta nas Origens, entre as quais a possibilidade de retirada do mundo e um espaço em que podemos nos recolher em solidão.
Dito isso, como relacionar o não-pensamento com a prática de males tais como os crimes contra a humanidade, males proibidos pelo direito internacional e pelo direito interno? Uma das contribuições mais instigantes de Arendt para esse debate é a ideia de que a pluralidade é uma dimensão da condição humana em dois sentidos: é a condição em que nos encontramos desde que nascemos e é uma condição do pensar. Em pensamento nós nos relacionamos com o mundo tal como ele se nos apresenta e, na ação, descortinam-se aos nossos pares o modo como o entendemos e como nos entendemos com ele desde a posição em que nos encontramos. Trata-se de lidar (i) com o fato de que dividimos a terra com outros conhecidos e desconhecidos, próximos e distantes, pelos quais podemos ter apreço, desapreço ou ser indiferentes, e (ii) com a norma de que ser conhecido ou desconhecido, próximo ou distante, estimado ou não estimado não justifica ações voltadas à transformação daquele fato da vida humana na terra, ainda que ações desse tipo sejam, ocasionalmente, autorizadas, como foram por Hitler ou por Stálin. Os crimes contra a humanidade são uma ação desse tipo, uma autorização de práticas voltadas para a transformação da lei da terra, e expressam uma recusa do fato básico de que a coabitamos. Essa recusa não raro ganha forma em disputas em torno do que é o humano, daquilo que se percebe como humano a partir de representações que temos dele, seja para a destruição do que não cabe na nossa ideia de humano, seja para a sua ordenação hierárquica.
O conceito de banalidade do mal ganha circulação no Brasil à medida que se insiste em autorizar o injusto, a construir publicamente o injusto como um valor positivo, e à medida que clichês, slogans, teorias conspiratórias passam a predominar em discursos oficiais do presidente e ministros em suas respostas à pandemia: respostas que afrontam a lei e a ciência, com mortes que se acumulam, e que relativizam a vida com a produção de categorias de seres descartáveis, como idosos, obesos e as pessoas com comorbidade, uma categoria até então estranha à retórica política. Não é só de negacionismo que se trata. Em circuitos que o bolsonarismo integra os agentes produzem uma ciência e uma legalidade alternativas, as quais se implementam como políticas.
Nas nossas circunstâncias tem sentido discutir a aplicação do conceito, o qual, como tentei mostrar, Arendt cunha a propósito de crimes praticados em um regime totalitário e que tem como elemento o não-pensamento. O não-pensamento, do qual Eichmann é uma figura com validade exemplar, um modelo, ganha forma em certos usos da linguagem, e padrões semelhantes se manifestam no Brasil dos nossos dias, seis décadas depois do início do julgamento em Jerusalém. Se, por um lado, nós não nos encontramos num regime totalitário, por outro, a precariedade da esfera privada, o ímpeto das dinâmicas de normalização e de administração da vida, o não-cessar das horas que passamos no trabalho e em espaços regidos pela cibernética, tudo isso mina as condições do pensar. Olhando ainda de outra ótica, parece-me pertinente considerar que a circulação do conceito entre nós, caiba ou não aplicá-lo, talvez indique o que a Arendt chama, em “Understanding and politics”, de compreensão preliminar de um fenômeno novo: no nosso caso, a novidade pode passar pela percepção dos limites da lei e da necessidade de imaginar outras formas de julgamento. Se for esse o caso, um dos nossos desafios é perceber o que desse fenômeno o uso do conceito ilumina, sem descuidar daquilo que a sua aplicação imediata também pode obliterar, a começar por aquilo que as nossas circunstâncias portam de novidade.
[1] Este argumento e uma análise mais detida dos conceitos de mal radical e banalidade do mal se encontram em Hannah Arendt and the Jewish question, de Richard Bernstein.